Anatomia de uma Queda (2023), de Justine Triet

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readJan 25, 2024

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A música que se destaca na trilha sonora do vencedor da Palma de Ouro de Cannes de 2023, “Anatomia de uma Queda”, é uma versão instrumental de “P.I.M.P.”, do 50 Cent. Logo no início do filme, esta música é colocada no volume máximo pelo marido da escritora alemã Sandra Voyter (Sandra Hüller), poluição sonora que põe fim a uma entrevista que uma estudante fazia com Sandra no andar térreo da casa onde ela, o marido francês Samuel Maleski (Samuel Theis) e o filho pré-adolescente Daniel (Milo Machado Graner) vivem. A música ainda tocava quando Daniel encontra o corpo do pai do lado de fora da casa.

A autópsia aponta para uma inconclusão da causa da morte, o que coloca Sandra como suspeita de assassinato. A outra hipótese é suicídio. Sandra é levada ao tribunal, onde mais uma vez a música é evocada: o promotor, acusando-a, traz de volta a música ao falar sobre o teor sexual da letra, que poderia ter incomodado, caso ela conhecesse a canção, a jovem entrevistadora. O promotor vai mais além, questionando se Sandra, uma mulher assumidamente bissexual, não estaria seduzindo a entrevistadora e isso despertou a fúria do marido, pois ela já o havia traído no passado com outra mulher. Usar da sexualidade para desacreditar ou mesmo abertamente condenar uma testemunha ou, no caso, ré, infelizmente é uma tática que parece não ser circunscrita ao mundo do cinema.

E não é apenas a sexualidade de Sandra que é colocada na balança durante o julgamento — julgamento este que é mais sobre a personalidade e modo de vida da ré do que sobre a morte de Samuel: promotor e defesa trazem à baila discussões sobre o sucesso de Sandra como escritora em comparação com o fracasso do marido na mesma atividade, incluindo aí o fato de ela ter se inspirado num argumento nunca desenvolvido pelo marido para criar um de seus mais bem-sucedidos romances. A relação com o filho, ainda que em menor escala se comparado aos outros assuntos, também é discutida na corte, com Samuel, apesar de ausente e morto, ganhando pontos por ser o responsável pela educação do garoto em domicílio.

Defendendo Sandra está o amigo de longa data Vincent Renzi (Swann Arlaud). Quem também toma o púlpito do julgamento, por vontade própria, é o filho Daniel, que desenvolveu uma deficiência visual após um acidente quando tinha quatro anos — acidente este que sempre assombrou Samuel, que se considerava culpado. Assim como Daniel, que mesmo estando tão próximo do crime não sabe em quem acreditar, nós precisamos tomar um lado na discussão: para Justine Triet, mais importante que saber o que realmente aconteceu é se posicionar com firmeza, ainda que sem clareza. É a velha incógnita e imposição machadiana: sem saber ao certo se Capitu traiu ou não Bentinho, precisamos nos posicionar no debate.

Não conheço a fundo a seleção completa dos filmes em competição em Cannes em 2023, mas comparativamente com os anos anteriores, a escolha de “Anatomia de uma Queda” para a Palma de Ouro é mais conservadora, pois lhe antecederam a fantasia tecno de “Titane” (2021) e o provocativo “Triângulo da Tristeza” (2022). Filmes de tribunal existem aos montes em todos os momentos da história do cinema, e em geral são filmes que angariam grande prestígio pelo bate-e-volta de conjunturas e depoimentos que geram o engajamento da plateia e do júri, dois papéis que se entrelaçam.

O filme brinca com o som — desta vez, não a música — mais uma vez quando é apresentada no tribunal uma gravação de uma briga do casal, ocorrida um dia antes da morte de Samuel. Começamos a ouvir a gravação como todos os presentes naquela corte, até que surgem imagens para casar com os sons: um flashback! Acompanhamos assim o que aconteceu até um momento de violência mais extrema, quando voltamos de supetão para o tribunal e ouvimos apenas o barulho de um copo quebrando.

O que salta aos olhos ao final de “Anatomia de uma Queda” não é o veredicto de culpada ou inocente, mas sim o que o julgamento significou para Sandra: ela foi julgada por ser quem era, uma mulher bissexual, bem-sucedida profissionalmente e algo apartada do filho com deficiência. Nós, mulheres, não precisamos estar no lugar de rés para sermos julgadas por quem nós somos. Basta ter nascido com dois cromossomos X para estarmos em eterna desvantagem, uma que o cinema não cansa de nos lembrar — para que tentemos combatê-la.

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