Aos Teus Olhos (2017), de Carolina Jabor

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readNov 8, 2018

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(Imagem: reprodução)

Um professor acusado de assediar um aluno tem a vida completamente mudada com essa acusação. Você deve conhecer um filme com essa sinopse: “A Caça”, filme dinamarquês de 2012 que alcançou rapidamente o status de cult. Um filme mais recente, brasileiro e dirigido pela cineasta Carolina Jabor, parte de premissa semelhante, mudando apenas o gênero da criança assediada, o que no fundo pode mudar tudo: em “A Caça”, o professor de educação infantil é acusado de tocar de maneira apropriada uma aluna; em “Aos Teus Olhos”, o professor de natação é acusado de beijar um aluno na boca.

Assédio é um tema que deve, sim, ser tratado no cinema — mas de uma maneira sensata, ou o filme acaba fazendo mais mal do que bem para o entendimento do tema. Nós falamos muito sobre como é importante termos mulheres diretoras no cinema, mas falamos pouco sobre mulheres roteiristas. Uma feminista escrevendo um roteiro pode fazer toda a diferença em um filme.

Isso não aconteceu com “Aos Teus Olhos” (2018), que apesar de ser dirigido e produzido por Carolina Jabor, foi escrito por Lucas Paraizo, baseado na peça “O Princípio de Arquimedes”, de Josep Maria Miró. Paraizo já escreveu outros roteiros, como o de “Gabriel e a Montanha”, que anda sobre a linha tênue entre ficção e documentário, mas nada o preparou para o que era preciso em “Aos Teus Olhos”. Mesmo assim, o filme tem características louváveis.

(Imagem: reprodução)

Antes da averiguação do que aconteceu de verdade, a mãe do menino Alex coloca uma mensagem sobre o assédio num grupo de WhatsApp. Ela usa as palavras para modificar a situação — como dizendo que os pais haviam notado algo diferente no menino. É a partir daí que a situação começa a formar uma bola de neve. Isso é muito interessante no sentido de usar o WhatsApp, que acabou sendo um dos protagonistas na disseminação de boatos nas eleições de 2018. O filme mostrou uma realidade já conhecida, do poder do aplicativo para mudar vidas — para melhor ou pior — e como uma mensagem mandada com manipulação em um grupo pode fazer toda a diferença. “A Caça” foi feito antes do boom das redes sociais. Mas por que a mãe tem que ser a histérica que divulga e manipula a história por raiva? Por que não o pai? Diga aí por que a mãe tem de ser a louca da história, senhor Paraizo?

O próprio pai de Alex não é nenhum herói. Ele diz “coragem não é o forte aqui” e “segura esse choro, hein, moleque” em dois momentos distintos. Um homem cheio de masculinidade tóxica com uma ex-mulher com quem vive brigando — ele não é exemplo para Alex, nem fonte de carinho e atenção.

Davi confronta Rubens (Imagem: reprodução)

Se os pais não são santos, o que dizer do professor Rubens, interpretado por Daniel de Oliveira? Bem, ele também tem suas falhas de caráter. Rubens comenta sobre as meninas da natação — e em especial sobre as mães delas — de maneira sexual. Na linguagem corporal, observamos que ele fica mexendo no anel, imitando um ato sexual, enquanto fala com a chefe Ana (Malu Galli). Sinal de nervosismo ou deboche disfarçado?

E como Ana baliza a situação? Claro, nenhum diretor de escola fica feliz em lidar com um caso de assédio, mas todos deveriam estar ao menos preparados para isso. Ana não está. Após perguntar a Rubens se ele é gay e ele se recusar a responder, interdita a piscina em que ele nadava. Ao mesmo tempo, ela reclama da intervenção dos pais e, indiretamente, do “politicamente correto”.

A partir da acusação formal, há um barulho como de sirene na trilha sonora. E a polícia faz tudo certinho e não tem preconceitos para julgar, certo? Não. Rubens dá conselhos amorosos aos alunos adolescentes do clube. Quando um aluno o defende em frente ao investigador, ele pergunta a Rubens se o menino é homossexual.

Daniel de Oliveira, Carolina Jabor e equipe (Foto: Daniel Chiacos)

Sim, eu sei que o tema principal é o julgamento rápido e sem provas que é feito todos os dias através das redes sociais e aplicativos de mensagens e que, quando se aplica à vida real, pode acabar com tudo que uma pessoa tem. Também sei que o sangue de todos ferve com indignação quando um menino branco é assediado ou violentado — quando é uma menina, a situação pode até ser relativizada, como Rubens o faz quando comenta que a menina de 12 anos deve saber mais sobre sexo do que ele. Parte deste horror frente à violência sexual contra meninos pode ter a ver com o que o pai estúpido de Alex teme: e se aquela carícia foi o estopim para que o filho “vire” homossexual? E acredite: há muitas pessoas que pensam assim.

Essa ideia de que “foi um beijo no rosto, a interpretação do menino sobre o ato é que foi equivocada” é tão ruim quanto dizer que uma mulher não sabe a diferença entre elogio e assédio. Esse discurso relativiza o assédio, e fica mais fácil para o assediador sair livre. Como “Aos Teus Olhos” poderia acabar com essa mensagem? De duas maneiras:

  • Se o verdadeiro assediador fosse o outro professor de natação, Heitor (interpretado por Gustavo Falcão), seria um plot twist fantástico, e não haveria relativização da fala da vítima.
  • Se o assediador fosse o pai do menino, Davi (interpretado por Marco Ricca), seria uma maneira interessante de mostrar a masculinidade tóxica e a dissimulação de alguns assediadores, que ainda por cima estão dentro da casa da vítima. Mas para isso acontecer, a mãe não poderia ser a primeira pessoa para quem Alex conta sobre o beijo — a não ser que Davi o manipulasse.

O roteirista Lucas Paraizo, como bom brasileiro apreciador de arte e literatura, deve gostar de Machado de Assis, e por isso tentou dar um toque machadiano ao roteiro, com um “foi ou não foi” ao estilo traição de Capitu. Todo mundo quer descobrir se Rubens assediou ou não o aluno, e fica buscando pistas. Mas isso talvez não seja o ponto principal do filme. O assédio está na superfície de uma piscina. Ao mergulharmos, descobrimos mais litros e litros de outros fatores, que nem sempre são considerados — mas deveriam ser.

(Imagem: reprodução)

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