Aprendendo com a Vovó (2015): um road movie sobre aborto

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readSep 22, 2017

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Um road movie em seis atos. Mas não é um road movie qualquer. É um road movie diverso e feminista que trata de aborto.

Julia Garner e Lily Tomlin (Imagem: reprodução)

ESTA CRÍTICA CONTÉM SPOILERS

Elle (Lily Tomlin) não é uma avó convencional — e não é porque ela não tem papas na língua e é tatuada. Elle é lésbica, poetisa, livre e de mente aberta. Elle acabou de brigar com a namorada, com quem está há quatro meses, quando sua neta, Sage (Julia Garner) lhe faz uma visita com segundas intenções. Sage está grávida e precisa de dinheiro para um aborto. 630 dólares, para ser mais preciso. Sage e a avó têm pouco mais de oito horas para conseguir o dinheiro de alguma maneira. E é assim que elas iniciam uma pequena road trip — uma viagem de carro.

Elle fala abertamente sobre aborto, e por causa disso ela é expulsa de uma cafeteria — ela pode estar incomodando os clientes e deixando-os chocados. De fato, um casal olha para ela enojado. Elas ficam mais enojados ao saber que no local funcionava uma clínica de aborto.

(Imagem: reprodução)

Nós descobrimos que o ex-namorado de Sage é um babaca. Ele atende à porta fumando, usando uma blusa com a estampa de uma folha de maconha e segurando um taco de hóquei para se defender. A vovó Elle o descreve como “parecendo um sovaco”. Ele diz que vai bater na vovó e ela, obviamente, se defende… com o próprio taco de hóquei dele.

Outra figura masculina horrível é Karl (Sam Elliott), que há 49 anos foi casado com Elle. Ele ainda tem ressentimentos sobre o fim do casamento e sobre o fato de que Elle, naquela época, fez um aborto. Ele estava disposto a dar 500 dólares a Elle e Sage, mas fica furioso ao descobrir que o dinheiro é para pagar o aborto de Sage, dizendo que a menina vai para o inferno. Ele não dá o dinheiro — porque ele pensava que podia controlar o corpo de Elle há quase meio século, e ainda não superou o fato de que o corpo é dela, e ela fez o que quis.

(Imagem: reprodução)

Elle comenta brevemente sobre seu próprio aborto — feito em um porão, por um homem que disse ter feito faculdade de medicina, algo de que Elle duvidava, e ela se recusa a responder se o procedimento doeu. Mais tarde, ela diz para a atendente da clínica que sua experiência com aborto foi um pesadelo, já que o aborto foi feito durante a Idade das Trevas — um período da história dos direitos reprodutivos que algumas pessoas querem trazer de volta.

Na frente da clínica, há uma mulher raivosa chamando as mulheres que entram no local de ‘vadias’ e dizendo que elas irão para o inferno. Ela está sempre lá, pois as funcionárias da clínica já a chamam pelo nome. Que tipo de pessoa vai todos os dias a uma clínica para tentar forçar as pessoas a seguir suas crenças? Ela inclusive traz consigo a filha para ajudar a espalhar o ódio, e a garota faz sua parte ao socar Elle quando a sensata vovó diz que o mundo é maior que o ódio e a mente pequena delas.

No final, quem dá a elas a maior parte do dinheiro é a mãe de Sage, Judy (Marcia Gay Harden). É simbólico que quase todo o dinheiro tenha vindo de mulheres: 500 de Judy, 80 de várias amigas de Elle, e 50 do namorado de Sage — dinheiro que ele não deu porque quis, mas sim porque Elle o obrigou.

(Imagem: reprodução)

É uma família incomum. Elle foi casada com Violet durante 38 anos. Judy teve Sage através de um doador de esperma porque estava “muito ocupada”. Judy foi concebida em uma transa casual de Elle com um homem. Não podemos evitar fazer a comparação entre esta vovó maluquinha e a personagem de Lily Tomlin, Frankie, na série “Grace and Frankie”. Ambas são excêntricas e apoiam e amam incondicionalmente suas estranhas famílias.

Em um road movie, a viagem dos protagonistas é uma metáfora que simboliza e um recurso narrativo que demonstra a mudança das personagens conforme elas percorrem a estrada. O ponto final da viagem pode ser o mesmo que o ponto inicial, mas as personagens estarão mudadas. Durante a jornada, Elle e Sage se reconectaram a Judy e voltaram a ter a atenção dela. Judy também aceitou a morte de Violet, sua mãe favorita, e perdoou Elle por ressentimentos do passado. A saída mais fácil para o filme, dado o tema, seria fazer Sage repensar o aborto e desistir dele ao final. FELIZMENTE (e escrevo com letra maiúscula para gritar minha felicidade com a escolha) isso não aconteceu, e o foco do filme ficou na relação daquelas mulheres tão diferentes.

(Imagem: reprodução)

Algo que muito me agrada no filme é justamente o fato de, apesar de ter sido escrito e dirigido por um homem, ele ser sobre mulheres — e mulheres de todas as idades, cores de pele e orientação sexual. Temos Laverne Cox como uma tatuadora, Elizabeth Peña, em um de seus últimos papéis antes de sua morte, como uma amiga de Elle, e Judy Geeson como Francesca.

Lily Tomlin e Laverne Cox (Imagem: reprodução)

O filme, cujo título em português nos faz pensar em uma comédia barata e não na sensível obra que ele realmente é, menciona o feminismo em algumas ocasiões. Em uma delas, a vovó Elle compara Betty Friedan, autora de “A Mística Feminina”, ao Totó de “O Mágico de Oz”, por ela ter puxado uma cortina moral e revelado a verdade sobre o machismo na sociedade.

O diretor e roteirista Paul Weitz, que dirigiu alguns episódios da série “Mozart in the Jungle” e também dois filmes de “American Pie — porque ninguém é perfeito — consegue seu intento de mostrar como uma senhora idosa pode ser mais mente aberta e progressiva que um jovem. Mais do que isso, ele dá todo o protagonismo às mulheres. Porque o corpo é delas, e elas que devem decidir.

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