As mulheres por trás de “Branca de Neve e os Sete Anões” (1937)

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
8 min readDec 26, 2017

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Branca de Neve limpa a casa com a ajuda de criaturas da floresta (Foto: reprodução)

Oitenta anos atrás, a revolucionária animação “Branca de Neve e os Sete Anões” estreava nos cinemas, impressionando a todos e provando que o público podia, sim, prestar atenção a uma animação com mais de uma hora de duração.

Branca de Neve não é nenhum modelo feminista. Ela tem apenas 14 anos, é ingênua, bondosa, trabalhadora e sonha com o dia em que seu príncipe chegará. E quando ele de fato chega, ela, como uma boa donzela, se mostra tímida e foge deles. Então ela escapa da morte, limpa a casa de sete anões que trabalham extraindo pedras preciosas de uma mina, e aceita comida de uma estranha — comida que na verdade é venenosa.

Num ranking de poder das princesas Disney, Branca de Neve estaria numa posição bem baixa — o primeiro lugar provavelmente seria ocupado por Merida ou Mulan. Mas não estamos aqui para falar sobre Branca de Neve, a princesa, mas sim sobre “Branca de Neve e os Sete Anões”, o filme — e as mulheres por trás dele.

Todo bom conto de fadas começa com “Era uma vez” (Foto: reprodução)

As coloristas dos estúdios Disney

Animação tradicional é um trabalho para mulheres — ao menos nos bastidores. A maioria dos desenhistas nos créditos iniciais de “Branca de Neve e os Sete Anões” são homens, mas a maioria das coloristas (inkers and painters) eram mulheres.

Uma colorista trabalhando no filme “Pinóquio” (Foto: Vanity Fair)

Há dois tipos de coloristas: as inkers preenchiam com tinta as células a serem animadas, uma a uma. Uma painter é quem faz o trabalho seguinte, de pintar os desenhos nas células com as cores pré-determinadas. Uma célula é um suporte de celulóide que era a matéria-prima para as produções animadas nos anos 30 e 40. Depois que cada célula recebe seu desenho, contorno e tinta, ela é fotografada, e o processo de edição pode começar.

Centenas de mulheres trabalhavam no departamento de Ink e Paint como coloristas, começando antes do nascer do sol e saindo do estúdio tarde da noite. O intervalo para almoço era curto, muitas meninas tiravam rápidos cochilos em qualquer canto e a pressão era imensa. Era um trabalho duro, cansativo e meticuloso. As células eram frágeis, as cores eram muitas, e perfeição era o mínimo exigido das jovens coloristas.

Coloristas nos anos 50 (Foto: reprodução)

Se você é uma dessas pessoas que reparam muito nas cores de um filme — e eu digo isso porque sou uma dessas pessoas — seus olhos irão se deliciar com o trabalho dessas garotas quando você vir “Branca de Neve e os Sete Anões”. Não podemos negar que o filme teria um efeito diferente no público se fosse em preto e branco. São estas mulheres, as coloristas, que em parte foram responsáveis por como o filme se mostra na tela — elas, por exemplo, incluíram um toque de blush em cada célula para deixar as bochechas de Branca de Neve mais rosadas e menos pálidas.

Os estúdios Disney se orgulhavam de dizer que eram o único estúdio em Hollywood no qual a atração principal eram os artistas por trás das câmeras, e não as estrelas. No filme “O Dragão Relutante” (1941), durante a visita ao estúdio nós podemos ver o desenvolvimento de novas cores de tinta e também ver brevemente as coloristas do departamento de Ink & Paint — as heroínas esquecidas da era de ouro da Disney.

Nesta revista, Mickey explica como funciona um estúdio de animação. Trabalhando comocoloristas vemos Minnie e Margarida (Fonte: National Geographic, 1963)

As inspirações para Branca de Neve — Hedy Lamarr, Marge Champion e Adriana Caselotti

Um dos maiores desafios do filme foi criar animações convincentes, não artificiais, dos personagens humanos. É por isso que o príncipe aparece em pouquíssimas cenas — todos os esforços foram concentrados na animação da Branca de Neve. E com o objetivo de traduzir a naturalidade dos movimentos humanos para os desenhos, Disney iniciou uma tradição: ele contratou atores para interpretar as cenas para os desenhistas e animadores. Ao final, a aparência de Branca de Neve foi uma mistura de três inspirações.

Hdy Lamarr era uma atriz austríaca que se tornou famosa mundialmente após uma cena escandalosa de nu frontal no filme “Êxtase”, feito quando ela tinha apenas 19 anos. Mais tarde, Hedy seria uma das criadoras da tecnologia que permite que o Wi-Fi e o GPS funcionem.

Hedy Lamarr em 1933 (Foto: reprodução)

A modelo live-action de Branca de Neve foi Marge Champion, uma famosa dançarina que também serviu como modelo em “Pinóquio” e “Fantasia”, e ainda vive conforme eu escrevo estas linhas. Ela representava as cenas junto aos desenhistas, mas a aparência física de Branca de Neve também foi fortemente influenciada por sua dubladora.

Marge Champion posando (Foto: reprodução)

A primeira princesa Disney foi dublada por Adriana Caselotti, que tinha 18 anos quando a pré-produção do filme começou e 21 anos quando ele finalmente foi lançado. A carreira de Adriana sofreu uma grande reviravolta depois do lançamento do filme: ela descobriu que o seu contrato a proibia de fazer qualquer outro trabalho. Ela não podia fazer mais nenhum filme, programa de rádio ou teatro. A voz da Branca de Neve precisava ser exclusiva. Ela participou de turnês vestida de Branca de Neve para fazer propaganda do filme, mas não foi creditada nas telas e teve uma potencial carreira destruída por um contrato de trabalho abusivo.

Branca de Neve e Adriana Caselotti (Foto: reprodução)

As inspirações para a Rainha Má — Joan Crawford e Lucille LaVerne

Branca de Neve pode ser a mais bela de todas, mas a Rainha Má — que, aliás, se chama Grimhilde — precisava estar bem atrás dela no ranking de beleza. Para criar a personificação animada da beleza má, os desenhistas se inspiraram em algumas das mais famosas atrizes dos anos 1930.

A Rainha tem o sex appeal de uma vamp e os traços da atriz Joan Crawford. Já foi notado que a roupa da Rainha lembra muito o figurino usado por Helen Gahagan no filme “Ella — A Feiticeira”, de 1935.

Helen Gahagan em “Ella — A Feiticeira” (Foto: reprodução)

Joan Crawford estreou no cinema em meados dos anos 20, e seu estilo da época das melindrosas foi o que mais influenciou os animadores conforme criavam a Rainha. Com a chegada do cinema sonoro, Joan conseguiu papéis maiores e melhores, e se estabeleceu como uma das atrizes mais populares e glamourosas do mundo por mais de 20 anos.

A Rainha Má e Joan Crawford (Foto: reprodução)

A Rainha foi dublada por Lucille LaVerne, cujo outro papel importante no cinema foi como a vilã do filme “Órfãs da Tempestade”, de 1921. A linguagem corporal de Lucille, conforme ela gravava as falas, inspirou os movimentos tanto da Rainha quanto de seu alter-ego de Bruxa. Lucille trabalhava desde criança no teatro e foi uma das grandes damas da Broadway no começo do século XX. Lucille LaVerne se aposentou após “Branca de Neve e os Sete Anões” e morreu oito anos depois do lançamento do filme.

Lucille LaVerne se diverte posando como Bruxa (Foto: reprodução)

A mãe de Walt Disney

Não, a mãe de Walt Disney não serviu de inspiração para Branca de Neve nem, felizmente, para a Rainha Má. Mas a história da vida de Flora Disney — ou melhor, a história de sua morte — está intimamente ligada com o sucesso de “Branca de Neve e os Sete Anões”.

Com o imenso lucro gerado pelo filme, Walt Disney comprou uma casa nova para seus pais. A casa, entretanto, tinha um problema na tubulação que não foi consertado de maneira correta e, um mês após se mudar para a casa nova e menos de um ano após a estreia de “Branca de Neve e os Sete Anões”, Flora Disney morreu asfixiada pelo gás que vazava.

Flora Disney é a segunda à esquerda. Walt Disney está na ponta direita, ao lado de sua única irmã, Ruth (Foto: reprodução)

Walt Disney se sentiu pessoalmente responsável pela morte da mãe, e o triste episódio afetou-o de diversas maneiras: não apenas psicologicamente, mas profissionalmente — dali em diante ele escolheu em fazer de quase todos os seus protagonistas órfãos.

Uma voz 100% brasileira — Dalva de Oliveira (e outra dubladora misteriosa)

O Brasil ficou em cima da cerca com a chegada do cinema falado. Enquanto países europeus criavam leis que obrigavam os filmes falados a serem dublador na língua oficial do país, no Brasil as dublagens mequetrefes conviviam com a legendagem.

O primeiro filme a ser dublado em um estúdio localizado no Brasil, com profissionais renomados, foi exatamente “Branca de Neve e os Sete Anões”. Todos imaginavam que o filme seria um sucesso, e para garantir o completo entendimento do público, as canções foram adaptadas para o português.

A artista escolhida para dublar Branca de Neve foi Dalva de Oliveira. Cantora de origem humilde, atitude ousada e que colocava toda sua paixão em tudo o que fazia, Dalva não foi, curiosamente, contratada para cantar as músicas do filme.

Dalva de Oliveira (Foto: reprodução)

Quem ficou responsável por gravar as canções foi Maria Clara Tati Jacome. Muito pouco se sabe sobre Maria Clara. Em buscas pela internet, vemos que seu nome está ligado apenas ao filme de 1937 e nada mais — ou quase nada: no site MyHeritage, descobrimos que ela se casou com José Edwin Murray e alguns de seus descendentes trabalharam no ramo da música.

Única foto na internet de Maria Clara Tati Jacome (Foto: MyHeritage.com/ reprodução)

A dublagem de 1937 foi perdida — de maneira que não podemos ouvir Maria Clara. Abaixo temos uma reconstrução, tendo como base um LP de 1945, em que Dalva de Oliveira dublou a voz e as canções de Branca de Neve:

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