Ataque dos Cães (2021), de Jane Campion

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readDec 4, 2021

--

Coisa de mulher. Em 1993, Jane Campion provou, de uma vez por todas, que cinema é coisa de mulher ao se tornar a primeira mulher diretora a ganhar a Palma de Ouro em Cannes com sua obra-prima “O Piano”. Quase 30 anos depois, Campion prova que faroeste – o gênero cinematográfico mais masculino e quase esquecido atualmente – é coisa de mulher com “Ataque dos Cães”, um excelente faroeste sobre masculinidade.

Coisa de mulher no velho oeste é ser dona de um saloon ou cantina. Rose Gordon (Kirsten Dunst), viúva e mãe, é dona de uma cantina num lugarzinho longínquo. Ela vive com seu filho adolescente, Peter (Kodi Smit-McPhee), e toda noite e dia serve bêbados e caubóis. Entre estes caubóis estão Phil (Benedict Cumberbatch), que numa noite zomba de Peter por ele ter feito as flores de papel que decoram as mesas da cantina, e George (Jesse Plemons), irmão de Phil que está apaixonado por Rose.

E então George se casa com Rose. Peter vai viver numa pensão para estudantes e Rose vai viver sob o mesmo teto que George e Phil. O confronto se inicia. Ele acontece não porque Phil é um homem rústico – descobrimos que ele estudou filologia clássica na faculdade – mas porque ele não suporta Rose e acha que ela só está interessada no dinheiro da família. Para seguir adiante, Rose começa a beber. Quando Peter visita o rancho, de início Phil o provoca, mas repentinamente ele decide se tornar mentor do garoto.

O comportamento de Phil para com Peter, quando eles se conhecem, é um exemplo perfeito de masculinidade tóxica. Phil diz para Peter “ser homem” quando ele vê o garoto servindo mesas e descobre que ele fez as flores de papel. A mudança de comportamento de Phil nunca é completamente explicada, e não precisa ser: ninguém, na vida real, pode ser um exemplo perfeito de qualquer coisa, porque humanos são complexos e não podemos ser só heróis ou vilões o tempo todo.

Em “Ataque dos Cães”, George é um homem que chora porque é bom não estar mais sozinho. Rose o ensina a dançar, e ele a apoia quando ela toca piano – por outro lado, Peter a zomba quando ela erra ao tocar uma música. Peter encontrou o corpo do pai após ele se enforcar – nas palavras de Peter, porque o pai achava que Peter era “forte demais”, algo com que Phil não concorda. E Bronco Henry, o mentor de Phil, sempre mencionado mas nunca mostrado, deixou para Phil uma coleção de revistas de fisiculturismo para Phil admirar o corpo masculino. Mais de uma vez, o filme mostra que não há uma maneira única de expressar masculinidade, sem apontar qual é a melhor maneira.

Jane Campion teve um bom exemplo a seguir no gênero faroeste: ninguém menos que Alice Guy-Blaché. Quando Alice saiu da França e foi para os Estados Unidos, ela construiu seu estúdio Solax em Fort Lee, New Jersey, e produziu e dirigiu centenas de filmes, incluindo muitos faroestes. Na década de 1910, faroestes eram chamados de “military films”. Assim como outros estúdios, o Solax fazia as estreias de filmes de gêneros específicos em dias específicos da semana. Em abril de 1911, sexta-feira se tornou o dia em que estreavam “military films”, prática que continuou até o início de 1912.

O papel da mulher no gênero faroeste é em geral um papel ingrato. Muitas vezes a donzela indefesa, a mulher só tem mais controle sobre seu próprio destino quando vive à margem da sociedade, como dona de saloon ou prostitua – ou mesmo as duas coisas ao mesmo tempo. Vemos um exemplo disto no ótimo faroeste “Matar ou Morrer” (1952). A mulher mais respeitada da cidade é a dona do saloon, a (provavelmente) ex-prostitute Helen Ramírez (Katy Jurado). Mas “Matar ou Morrer” é uma obra-prima por muitas razões, e uma delas é que o filme subverte o tropo da donzela em perigo com Amy (Grace Kelly), esposa do protagonista que, numa reviravolta, salva o dia quando ela responder à súplica encontrada na música-tema: não me abandone, querida (“do not forsake me, oh my darling”).

No final, Rose pode não ser o centro da narrativa em “Ataque dos Cães” – como as mulheres em geral não o são nos faroestes – mas ela é fundamental para a trama. Jane Campion é sábia o bastante para não usar a feminilidade de Rose como contraponto à masculinidade dos outros personagens, o que seria uma saída fácil porém errada. O filme não faz julgamentos, apenas cria personagens incrivelmente reais, com os quais o espectador pode se identificar devido à veracidade que Jane Campion, roteirista e diretora, imprimiu neles.

--

--