Ativismo e Aruanas

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readNov 26, 2019

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(Imagem: reprodução)

Aruanas chegou ao Globoplay na semana em que foi anunciado que o Fundo para Preservação da Amazônia pode ser extinto — timing melhor não há. É uma série retrato dos nossos tempos: tempos em que índios querendo demarcação de reservas estão “reclamando” sem motivo, tempos em que policiais e profissionais da saúde fazem parte de uma rede de corrupção, tempos em que o fim justifica os meios — com tanto desemprego, pra quê reclamar de empresas que geram empregos e avanços, sendo que destruir o ambiente é mero detalhe? –, tempos em que o cidadão de bem acha que ativismo é sinônimo de vagabundagem.

Aruana é o nome de uma organização não-governamental criada e mantida por três mulheres: Verônica, Natalie e Luiza. O mais novo desafio da ONG será na Amazônia, onde a atividade mineradora está destruindo uma cidade — a fictícia Cari –, envenenando e escravizando seus habitantes. A recém-chegada ativista Clara descobre que o garimpo ilegal também alimenta uma rede de prostituição infanto-juvenil.

Tudo começa com um trabalho interno, quando um funcionário da mineradora KM entra em contato com a ONG Aruana para enviar-lhes um dossiê. Isso significa que os ativistas sempre dependem da bondade de estranhos, e sem delatores e infiltrados não há esperança de desmascarar crimes em organizações? Será que o bê-a-bá da atuação da ONG Aruana serve para todos os movimentos sociais?

Além das questões com o ativismo, as protagonistas também têm sua parcela de problemas pessoais. Natalie (Débora Falabella) perdeu uma filha e vive um doloroso luto. Verônica (Taís Araújo) tem um caso com o marido de Natalie. Luiza (Leandra Leal) passa mais tempo envolvida nas ações da ONG do que com seu filho. Clara (Thainá Duarte) está fugindo de um ex-namorado possessivo e violento.

(Imagem: reprodução)

Em 2019, as três maiores tragédias envolvendo a natureza aconteceram no Brasil: o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho em janeiro, os incêndios na Amazônia começando em agosto e o derramamento de óleo nas praias do Nordeste começando em setembro. Para completar, na contramão do que era esperado na situação mas totalmente de acordo com a mentalidade do governo, no começo de novembro foi liberada, na prática, a plantação de cana-de-açúcar em biomas como o Pantanal e a Amazônia.

Nos meses que se seguiram à estreia de “Aruanas”, a situação ficou cada vez pior na Amazônia: desmatamentos e queimadas atingiram níveis recorde… e o presidente, aquele mesmo que na campanha prometeu acabar com o ativismo no Brasil, culpou as ONGs pelos incêndios, mesmo sem ter provas. Quanto tempo levará até que ele, tal qual o presidente fictício da série, decrete a extinção de alguma importante reserva indígena para beneficiar mineradores e pecuaristas?

Com a arte imitando a vida, temos na série políticos que, em nome do desenvolvimento e geração de empregos, estão dispostos a acabar com áreas verdes e a biodiversidade. Um deles chega a dizer para Verônica que o desenvolvimento sustentável é utopia.

Além disso, no primeiro episódio, quando a jornalista Natalie faz uma pergunta sobre povos amazônicos para um entrevistado no seu programa, o diretor fica furioso, dizendo que falar de ecologia faz a audiência cair.

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Para completar, um funcionário diz ao dono da mineradora, Miguel (Luiz Carlos Vasconcellos) que “a questão indígena foi resolvida”, quando na verdade os povos indígenas que viviam na área da reserva recém-extinta foram massacrados. Mais atual e realista, impossível.

Um ponto muito negativo é a exploração da sexualidade da lobista Olga (Camila Pitanga). Olga não apenas é muito sexualmente ativa, mas também é bissexual. Por que colocar estas características justamente em uma vilã? Seria sua bissexualidade só mais um de seus “desvios de caráter”? Outro ponto negativo é a velocidade recorde com que Clara supera seu relacionamento abusivo.

O primeiro tipo de ativismo com o qual a maioria de nós tem contato — ou ouve falar — é o ativismo ambiental, e este cada vez mais incomoda. Ora, não acabamos de ver marmanjos atacando covardemente, com as piores palavras, a jovem ativista Greta Thunberg, apenas porque ela os incomodou? Assim como vimos com Greta e com Aruanas, são as mulheres jovens que estão na linha de frente da defesa do meio ambiente. Ironicamente, é o dono da mineradora que no segundo episódio faz um brinde que deveria nos servir de lema: “À coragem dos jovens. Só assim as coisas mudam”.

(Imagem: reprodução)

Dada a vocação educacional da teledramaturgia brasileira, precisamos aplaudir a iniciativa de Aruanas, série escrita com consultoria de ativistas do Greenpeace. A série se mostra ainda mais importante quando descobrimos — e nos assustamos com este fato — que o Brasil é o país onde mais ativistas são assassinados anualmente. O tom da série, quase documental nas ações da ONG, vem da experiência da co-criadora Estela Renner como documentarista. Os diálogos parecem tirados da boca das autoridades, de tão familiares que soam. E a coragem, despertada em nós pela ficção, precisa ser realimentada e reforçada todos os dias — é preciso acreditar, como a música repete tantas vezes ao longo da série. A causa é nobre, o preço a pagar por ela é caríssimo, mas não há mais como ignorar: este planeta é a única casa que temos, e perdê-lo não é uma opção.

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