Barbara Stanwyck, a rainha

Rafaella Britto
Cine Suffragette
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8 min readJul 25, 2017

Este é um guest post escrito por Danielle Carvalho e originalmente publicado em seu blog Filmes, Filmes, Filmes!

Percorrer a trajetória cinematográfica de Barbara Stanwyck é um desafio. A atriz fez quase um cento de filmes, cinco anos de uma série televisiva de tremendo sucesso nos anos 60 (The Big Valley, 1965–1969), outros dois do premiado show que levava seu nome (1960–1961). Debutou em Hollywood junto com o cinema falado (em 1929), depois de um período de relativo sucesso na Broadway, e só se despediu das telas nos anos 80, depois de outro grande sucesso — Os Pássaros Feridos (1983) — impossível um final mais auspicioso.

Dificuldade ainda maior é abarcar num artigo o conjunto de sua obra tão extensa e profunda. Mais fácil é passar por ela com passos vagabundos, parando de quando em vez para admirar uma heroína heterodoxa ou uma cruel femme fatale; ou para apreciar melhor aquela história genial de elenco notável, ou aquela outra que só se salva mesmo pela personagem principal (porque qualquer história vale a pena com ela).

(Foto: Reprodução)

Barbara fez muito de tudo: dramas, thrillers, comédias. Muitos filmes bons e outros tantos ruins. Se o ator é aquela propalada criança grande que vive a brincar de fazer de conta, ela sem dúvida foi das mais matreiras. Tomou parte em muita coisa esquecível, porém, sempre com tanta segurança que se tornava a única coisa a fazer sentido na tal produção — prova indelével de sua dedicação ao ofício.

Miss Stanwyck, a inatingível estrela de cinema, ou “a rainha”, como William Holden fazia questão de chamá-la depois que foi seu “Golden Boy” (no filme homônimo de 1939), vez por outra dava espaço para a Babs, fazendo renascer aquela moleca do Brooklyn que nos anos de 1910 só conhecia os stars a partir das poltronas piolhentas das salas de cinema do bairro. Basta que a gente a veja em The lady of Burlesque (William Wellman, 1943) para que percamos todo o respeito que temos por ela: Lá está Babs, rebolando num número sofrível do teatro burlesco no qual sua personagem trabalha. Ela responde aos trocadilhos infames lançados por seu co-protagonista para, pouco tempo depois, sair do palco dando cambalhotas. A sequência estapafúrdia é a única digna de nota desse thriller que é tão ruim ao ponto de não ter suspense algum… E só é digna de nota porque vemos por aí que a atriz defendia a contento qualquer coisa que lhe caísse nas mãos.

(Foto: Reprodução)

Barbara foi uma atriz moderna avant garde, ou melhor, foi a primeira atriz moderna. É surpreendente que uma atriz como ela tivesse surgido dentro da produção controlada dos estúdios americanos dos anos 30–50, época em que o artista estava fadado a interpretar continuamente variantes de um mesmo tipo. Além dela, só Bette Davis — outra rainha — transitava com eficácia entre gêneros e caracteres. Porque o carma da beleza apolínea não as atingira, puderam interpretar vilãs sem que a aparência se confrontasse com o mundo tipificado hollywoodiano, segundo o qual a beleza era um atributo da bondade. E porque esbanjavam talento, eram críveis como good girls, um pouco de maquiagem e muita arte sendo suficientes para que se transformassem nas mulheres mais lindas do mundo. Seus rostos de mulheres terrenas — por oposição às goddesses da tela prateada — quem diria, as trouxe modernas até aqui.

(Foto: Reprodução)

Quando deu corpo à dama burlesca, Barbara já havia vestido todas as máscaras disponíveis em Hollywood. Foi conduzida ao estrelato pelas mãos do grande Frank Capra quando ele era ainda pequenino, e burilou seu estilo enquanto ajudava o mestre a burilar o dele. Vemo-la muito pouco Barbara Stanwyck em Ladies of Leisure (1930), um filme muito pouco Frank Capra: Babs é Kay Arnold, a jovem de vida equívoca que, dilacerada pelo amor impossível nutrido por um aristocrata, tenta o suicídio. Capra toma-a nuns primeiros planos com iluminação intensa e clara e ela aparece delicada, frágil, santificada. Tão distante da imagem de mulher firme, tão à frente de seu tempo, que a tornaria célebre pelas mãos do próprio Capra na obra-prima Adorável Vagabundo (Meet John Doe, 1941). Barbara esteve sempre no meio-termo entre a frieza e a suavidade. É esse modo matizado como ela conduz suas personagens que a mantém moderna até agora, em detrimento das datadas películas maniqueístas produzidas por Hollywood.

(Foto: Reprodução)

Agora nós a vemos em Stella Dallas (King Vidor, 1937), drama mediano com uma obra-prima de interpretação. Uma Barbara em estado de graça desempenha, aos 29 anos, a mãe de meia idade, pobre, cafona e livre que, naquela sociedade cheia de preconceitos da época, precisa entregar a filha amada ao pai da jovem para vê-la ter alguma chance de futuro. Basta o plano final para que tenhamos dimensão da grandeza da atriz: close da mãe desgrenhada e linda em sua abnegação que, depois de ver a filha bem casada, desce a rua que as separará para sempre levando na cara um meio sorriso que mescla a tristeza da separação e a alegria do dever cumprido. Nenhuma maquiagem; louvável negação à maxfactorizada Hollywood dos anos 30, que pintava suas sofredoras como se fosse conduzi-las a um baile de gala. Ao deixar de mascarar a dor, Barbara humaniza sua personagem, remete-a a condição eterna da mãe que se doa pela prole — dando, assim, alguma vida a tal dramalhão.

“Stella Dallas — Mãe Redentora”, 1937 (Foto: Reprodução)

Mas rápido enxugamos a lágrima que ficou no canto do olho, pois já estamos a vê-la como a encantadora heroína sem nenhum caráter — variante que ela defendeu bem como ninguém — que usa seu poder de sedução para enredar o antropólogo tímido e jogá-lo nos braços dos patifes de sua família. O filme é The Lady Eve (As três noites de Eva, Preston Sturges, 1941) e ela, o desdobramento perfeito da fêmea bíblica responsável por induzir o homem ao pecado. A vítima é Henry Fonda, que ironicamente será o fornecedor da serpente com a qual a jovem consumara a tentação. A cena da sedução dessa cômica femme fatale — leitura humorística das vamps que, no cinema dos primórdios, enrolavam-se como cobras… — é impagável pelo charme que exala. Melhor que ela, só as sequências de comédia pastelão que se sucedem quando a vampira apaixonada decide ir atrás da vítima que a havia rechaçado para se vingar.

Com Henry Fonda em “As Três Noites de Eva”, 1941 (Foto: Reprodução)

De Stanwyck nasceu um dos tipos mais interessantes de good girl — aquela que une frescor, ironia e inteligência. Barbara fazia interpenetrar numa mesma personagem vilania e bondade, afastando-a de um maniqueísmo rasteiro, aproximando-se assim das mulheres de carne e osso que a viam nas telas. Isto está muito bem posto em The Golden Boy (Rouben Mamoulian, 1939), em que ela desempenha a mulher independente, amante do chefe, encantada pelo jovem violinista que se torna revelação no mundo do boxe. William Holden, o menino de ouro — que à época efetivamente não passava de um garoto, 11 anos mais jovem que sua rainha — combina idealismo e amargura extremos. Enquanto toca violino e sua alma se expande, ele e a mentora se descobrem apaixonados — e nós por eles, brilhantes como o par que percorrerá os dois lados da estrada de mão dupla que separa a emoção da dor, a arte da violência.

Com William Holden em “The Golden Boy”, 1939 (Foto: Reprodução)

Na sociedade patriarcal norte-americana da década de 30, em que a mulher acabara de ganhar direito ao voto mas ainda estava longe de alcançar pário de igualdade com o homem, Barbara construiu uma persona que ensaia a fuga do jugo masculino por meio de sua dubiedade e altivez. Ao economizar nos gestos e lágrimas, afastando-se do dramalhão, a atriz injetou densidade psicológica nas mulheres que criava. Esta sutileza, essa recusa a se deixar possuir totalmente pelo galã e pelo público, essa incompletude de sentido é, acho eu, o que ainda a faz tão interessante.

(Foto: Reprodução)

Era por meio de seu gestual que, vez por outra, Barbara extravasava a emoção contida. John Travolta, no discurso de entrega do Oscar Honorário à atriz em 82 (o único que ela receberia), remete-se à beleza e à confiança impressos no caminhar dela ao longo da tela. E aí lembramos da explosão de desejo da aparentemente fria Mae Doyle quando ela se entrega ao amante em Clash by night (Fritz Lang, 1952); da estranha Martha Ivers (de O tempo não apaga, Lewis Millestone, 1946) enquanto ela desce eufórica a escadaria que a levará ao namoradinho de infância, linda e leve pela primeira vez, como se só ele pudesse salvá-la da vida de hipocrisia que ela vivia desde que se separaram; da segurança com que sua Lily Powers de Baby Face (Alfred E. Green, 1933) usava seu corpo como lhe aprazia, plenamente dona de si num momento em que mulher nenhuma o era; de sua fragilidade ao cair nos braços do zé-ninguém Gary Cooper no final de Adorável Vagabundo (Frank Capra, 1941), tão dele como ele desde sempre fora dela.

(Foto: Reprodução)

Com Billy Wilder, Barbara fez o sensacional thriller Pacto de Sangue (Double Idemnity, 1944), em que era “mulher decaída” até no último grau, com um par de amantes que ela manipulava para tomar posse da herança do marido. Barbara soube carregar com a mesma sem-cerimônia a espingarda e a flor, sabendo exatamente o que fazer com uma e outra. E como isso fica claro naquela delícia de western à la anos 60 que é The Big Valley, no qual a atriz sessentona veste com a mesma doçura e assertividade o papel de matriarca da família!… Suponho que também ela gostasse dessa sua característica, já que em seu discurso de aceitação do AFI Life Achievement ela agradece especificamente a Frank Capra e Billy Wilder: aquele por ensiná-la tudo sobre o cinema, este por ensiná-la a atirar…

Meu amor por Barbara Stanwyck está impregnado de um orgulho imenso. Porque ela ressaltou a faceta masculina e a feminina que há em cada um de nós. Porque ela, extravasando os limites do star system, repudiou o histórico assujeitamento feminino, que ainda hoje nos violenta.

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Rafaella Britto
Cine Suffragette

São Paulo-based writer, poet, teacher, translator and researcher. Lover of classic films, music, traveling and all things vintage.