Benedetta (2021), de Paul Verhoeven: polêmicas e a teologia feminista

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readJan 16, 2022

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ESTA CRÍTICA TEM SPOILERS

“A mais nova provocação de Paul Verhoeven”: assim era anunciado “Benedetta”, filme que acaba de chegar aos cinemas brasileiros após competir pela Palma de Ouro em Cannes e impressionar o público em todos os países onde já estreou. Baseado em uma história real, da freira Benedetta Carlini, que vivia no Convento de Madre de Deus na cidadela de Pescia no século XVII, época da Contrarreforma, o filme provoca, sim: como todo bom filme, provoca reflexão.

Benedetta (Elena Plonka) quase morreu ao nascer, e isso levou seus pais a fazerem uma promessa: se ela vivesse, sua vida seria consagrada a Deus. Ainda menina, ela é levada a um convento para ser freira. Dezoito anos depois, no mesmo convento, Benedetta (agora interpretada por Virginie Efira) dá as boas vindas a uma nova noviça, Bartolomea (Daphné Patakia), que fugiu de um pai abusivo e abusador.

Benedetta leva a sério a alcunha de esposa de Jesus, pois vê Cristo se manifestando para ela e, inclusive, beijando-a. Ao confessar suas visões para um padre, ele lhe diz que o que viu é mentira, porque apenas o sofrimento, e não a alegria que Bendetta sentia, pode nos levar até Jesus. Acreditando então no poder do sofrimento, Benedetta o inflige a Bartolomea, pois não sabe lidar com o desejo que sente pela noviça.

Quando as visões de Benedetta passam a prejudicá-la, Bartolomea se voluntaria para ser sua companheira de cela e cuidar dela dia e noite. Lá fora, a Europa está sendo assolada pela peste, mas estranhamente Pescia, onde fica o convento, vem sendo poupada. Novas visões e estigmas — marcas no corpo semelhantes às que Cristo recebeu na cruz — fazem com que Benedetta passe a ser considerada santa e estimulam peregrinações populares até o convento, o que desagrada a Madre Superiora (Charlotte Rampling).

Ao chegar ao convento, a pequena Benedetta tem de se vestir com um hábito de algodão, que coça e incomoda. Isso é proposital, diz a irmã que a recebe: seu corpo é seu pior inimigo, e você não deve se sentir bem nele. Ela também diz que inteligência pode ser perigoso — principalmente, ela não diz mas fica óbvio no filme, a inteligência pode ser perigosa para as mulheres.

A Madre Superiora diz que “milagres brotam como cogumelos e costumam causar mais mal do que bem”, ao que uma jovem noviça responde “não acredito muito neles”. Essa é a Igreja Católica de sempre: a que vive falando sobre milagres, mas não reconhece um quando acontece bem na sua frente, seja por vaidade ou medo.

Em determinado momento, Benedetta diz a Bartolomea que não existe vergonha sob a proteção do amor de Deus. Depois, Benedetta diz que o amor particular por Bartolomea a ajuda a alcançar o amor universal, de Deus. A Madre Superiora entrega Benedetta e Bartolomea à Inquisição, ambas acusadas de “homossexualismo” e atos libidinosos. Com certeza não foram poucas as pessoas LGBTQIA+ que pereceram na fogueira na época da “Santa” Inquisição.

Nos Estados Unidos, a estreia de “Benedetta” foi marcada por protestos do grupo TFP — Tradição, Família e Prosperidade, que chamou a produção de “blasfêmia”. O diretor e co-roteirista Paul Verhoeven respondeu à acusação: “Eu realmente não entendo como pode ser um blasfemador em relação a algo que realmente aconteceu. Não se pode simplesmente mudar a história depois do fato. É possível dizer se foi certo ou errado, mas você não pode mudar a história. Creio que a palavra blasfêmia, nesse caso, para mim, é idiota.”

Não é, obviamente, a primeira vez que um filme sobre religião causa polêmica. O ousado e brilhante “A Última Tentação de Cristo” (1988) foi recebido com muita animosidade, a ponto de suscitar um incêndio terrorista em um cinema de Paris que exibia o filme. Outro filme sobre religião — este, como “Benedetta”, focado em uma noviça — é “Viridiana” (1961), do também provocador Luis Buñuel. “Viridiana” foi alvo da censura do ditador espanhol Francisco Franco e foi classificado como blasfemo pelo Vaticano.

O livro que inspirou o filme foi “Immodest Acts — The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Italy”, de Judith C. Brown, publicado em 1987. Pouco depois da publicação, o roteirista Gerard Soeteman levou o livro até seu colaborador, o diretor Paul Verhoeven. Soeteman escreveu um roteiro a partir do livro, mas devido a uma série de problemas ele não foi filmado na época. Quando finalmente o projeto saiu do papel, Soeteman não se envolveu na re-escrita do roteiro, declarando que seu original tinha um tom mais feminista, sobre uma mulher à procura de poder num mundo masculino, enquanto Verhoeven e o novo roteirista David Birke teriam preferido focar no lado sexual da trama.

Mas Soeteman se equivoca: do jeito que foi feito, “Benedetta” dialoga com o feminismo — mais precisamente, com a teologia feminista. Indo além da interpretação não-sexista da Bíblia, a teologia feminista engloba diversas teologias de diferentes religiões, e se reflete na fé cristã quando busca resgatar a igualdade de gênero que existia nas primeiras comunidades cristãs, das catacumbas e não das igrejas ostentadoras. A Contrarreforma, época em que Benedetta Carlini viveu, foi a época da Inquisição queimar na fogueira principalmente mulheres que desviavam da submissão e domesticação que delas eram esperadas. Benedetta é levada frente à Inquisição por um relacionamento homossexual. A teologia feminista clama por igualdade também dentro do espectro da diversidade sexual, de modo que certamente beneficiaria Benedetta se fosse sua contemporânea. Além disso, a teologia feminista discute o controle dos corpos femininos pelo patriarcado religioso e também a possibilidade da ocupação de lugares de poder pelas mulheres dentro das igrejas. A estrela de “Benedetta”, Virginie Efira, destacou sobre isso: “Benedetta tem uma forte crença em Jesus, e também está à procura de poder. Ela não é só doçura e altruísmo.” Benedetta, como todas as mulheres, se assemelha mais a Maria Madalena que à Virgem Maria.

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