Brasil em Transe no IndieLisboa — Cineastas refletem sobre o passado, o presente e o futuro do cinema brasileiro

Lígia Maciel Ferraz
Cine Suffragette
Published in
4 min readMay 28, 2019

Juliana Antunes e Bruna Carvalho Almeida trazem um recorte de raça, classe e gênero para a conversa.

Entre os dias 02 e 12 de maio, a edição 2019 do festival de cinema IndieLisboa deu destaque ao cinema brasileiro através do programa Brasil em Transe, que exibiu 23 filmes os quais, segundo o festival, trazem tanto uma consciência da sombra que se espalha pelo país quanto uma determinação de fazer frente a este obscurantismo.

Dos 23 filmes, oito (quatro longas e quatro curtas) são dirigidos ou co-dirigidos por mulheres brasileiras: Clara Linhart com Domingo; Brunna Laboissière com Fabiana; Petra Costa com Impeachment; Bruna Carvalho Almeida com Os Jovens Baumann; Nara Normande com Guaxuma; Juliana Antunes com Plano Controle; Marcela Ilha Bordin com Princesa Morta do Jacuí; e Julia Katharine com Tea for Two.

O festival também deu voz aos brasileiros na mesa-redonda do LisbonTalks também chamada Brasil em Transe. Caetano Gotardo, Juliana Antunes, Felipe Bragança, Rodrigo Carneiro, Bruna Carvalho Almeida e Gustavo Beck conversaram sobre onde, como e de que forma o cinema brasileiro se encontra na atual conjuntura política em que o governo de extrema direita vem desmantelando a cultura com cortes de verbas, de incentivos fiscais e de editais; prática ideológica que tem se tornado cada vez mais concreta.

Foto: Reprodução

Na mesa muito se falou sobre a importância da criação, no início dos anos 2000, de novas faculdades de cinema e de como houve uma mudança positiva e necessária na produção do conhecimento, especialmente com a entrada da população periférica nas universidades que, desde então, vem trazendo, com propriedade, um frescor estético e narrativo para um cinema que, muitas vezes, representou o povo brasileiro a partir de um olhar branco e masculino.

Reforçou-se também como festivais de cinema no Brasil — muitos dos quais serão afetados drasticamente devido às práticas do novo governo —, sempre foram verdadeiras pontes para que novos produtores e cineastas se conectassem e fomentassem um cinema brasileiro diverso. Além disso, foi evidenciado que a potência do cinema nacional vem sendo reconhecida em festivais internacionais, como o próprio IndieLisboa e também como Cannes e Rotterdam, este que recentemente fez uma mostra de filmes brasileiros dirigidos por cineastas negros.

Entre os participantes, cabe o destaque às cineastas Juliana Antunes — que foi a vencedora do IndieLisboa 2018 com seu longa de estreia, Baronesa — e Bruna Carvalho Almeida que contribuíram para o debate trazendo uma perspectiva de raça, classe e gênero sobre o presente e o futuro do cinema no país.

Juliana Antunes falou, a partir da sua vivência, a respeito da dificuldade de se fazer cinema sendo mulher. Viu seus colegas homens, que desejavam ser diretores, iniciarem a carreira já fazendo seus filmes, enquanto ela e muitas outras mulheres precisaram, antes, fazer atividades de produção e assistência para serem reconhecidas e "provar" que poderiam, sim, assumir a direção de seus próprios filmes.

Foto: Reprodução

O depoimento de Juliana sobre as dificuldades de se fazer cinema em um meio machista é tão verdadeiro que, durante sua fala, foi diversas vezes interrompidas por um dos homens da mesa, que parecia incapaz de ouvir uma mulher falar da sua realidade. Quando Juliana disse que os cineastas homens tinham a sua "trupe" formada por outros homens, e que isso tornava difícil para que uma mulher conseguisse entrar nas produções quando os grupinhos já estavam fechados, o homem em questão não hesitou em interrompê-la novamente para dizer que "nem todo homem", uma vez que na produtora dele, era ele "e mais duas minas".

Querendo contrariá-la, o cineasta só reforçou o que Juliana criticava: a falta de mulheres nas principais funções do cinema é reflexo de uma cultura machista, em que, sem estrutura e apoio, elas enfrentam mais dificuldades para chegar aos mesmos espaços que os homens. Por isso, é fundamental que eles não só abram espaço para que elas assumam o protagonismo, mas também que aprendam a ouvi-las e a levar em conta suas realidades.

Foto: Reprodução

Com a cultura brasileira sendo atacada de todos os lados possíveis, é importante que a classe se una para fortalecer e proteger, principalmente, as pontas mais fracas que serão as primeiras a serem arrebentadas. Foi a respeito disto que Bruna Carvalho Almeida se ateve. A cineasta pontuou que, com o corte de verbas e o fim de certos editais, algumas pessoas — que são sobretudo pessoas trans, negras e periféricas — já estão sendo mais prejudicadas do que outras, e que é preciso pensar em como evitar que elas sejam excluídas do protagonismo de suas próprias histórias, uma vez que, por tanto tempo, o cinema brasileiro em muitos momentos as retratou como sendo “o outro”.

Na mesa do LisbonTalks, ficou evidente que o cinema do Brasil em Transe, transita ainda tropeçando em suas próprias pernas. Porém, com os cortes de verbas para a educação e para cultura feitos pelo governo de extrema direita, o cinema brasileiro volta a ter um futuro sombrio com a ameaça de ter os recursos concentrados, novamente, nas mãos de poucos. E por isso, mais do que nunca, as pessoas que fazem o cinema acontecer devem se organizar tanto para construir, em conjunto, ações concretas contra as medidas bárbaras, quanto para evitar que mulheres cis, pessoas trans, população negra, periférica e fora do eixo Rio-São Paulo percam os já limitados acessos.

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