Bruxa e feminista, sim: assim é The Love Witch

Jess
Cine Suffragette
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7 min readOct 17, 2017

Uma das minhas primeiras referências cinéfilas é Winnie de Abracadabra (Hocus Pocus), possivelmente o filme ao qual assisti mais de 100 vezes. Ela era dentuça, seus cabelos ruivos formavam um penteado engraçado e ela usava um vestido bufante verde-esmeralda. Ao contrário da maioria das pessoas, sempre a achei linda, mas a verdade é que Winnie não tinha sido criada para arrancar suspiros da criança veada que fui. Na verdade, a intenção era dar medo, o que, ao lado da rainha das bruxas de Convenção das bruxas, ela certamente conseguiu.

Porém, as bruxas nem sempre foram retratadas dessa maneira. De Kim Novak a Veronica Lake, algumas bruxas do cinema foram mulheres lindíssimas, dispostas a usar seus poderes em benefício próprio, inclusive para conquistar o coração dos homens. Em 2016, a diretora Anna Biller trouxe de volta o tropo da bruxa bonita que enfeitiça os mortais na intenção de que eles se apaixonem por ela com o filme The love witch. Com sua aparência retrô, esse filme poderia ser apenas uma homenagem a filmes como Casei-me com uma feiticeira, mas não é o que acontece. Anna Biller usa a questão das bruxas para falar sobre masculinidade e feminismo enquanto nossos olhos são seduzidos pelo visual retrô.

The love witch conta a história de Elaine (Samantha Robinson), uma misteriosa mulher que, após a morte do amado em San Francisco, parte rumo a uma vida nova na Califórnia. Logo nos primeiros minutos, descobrimos que ela é uma bruxa e que ele morreu em circunstâncias misteriosas. Embora sinta saudades de seu antigo amor, Elaine está decidida a encontrar o homem de sua vida. Para atingir esse objetivo, ela conta com poderes mágicos, além de uma aparência física estonteante que nos lembra muito Lana del Rey.

Atenção! Este texto contém spoilers!

Lana Del Rey e Elaine: muito além da semelhança física

A semelhança entre Lana del Rey e Elaine é deixar o espectador, especialmente aquele que conhece a carreira da cantora, de queixo caído. Elaine é Lana del Rey em absolutamente todos os aspectos, desde a aparência física até a maneira como sua persona foi construída no mundo da música.

Samantha Robinson como Elaine.

Já escrevi sobre como Lana del Rey usa uma estética nostálgica, principalmente nos primeiros álbuns, para nos apresentar a figura de uma mulher frágil, mas ao mesmo tempo sensual. Seus primeiros videoclipes, como Kinda Outta Luck, estão cheios de representações cinematográficas dessa dualidade: a mulher fatal assassina versus a mulher frágil, sedenta por atenção, representadas pelas imagens de atrizes da era clássica cuidadosamente escolhidas por Lana. Essa tônica foi transposta para Born to die e Ultraviolence, álbuns que reforçam a mensagem dessa menina-mulher transitando em um mundo de homens arrogantes e hipermasculinizados. Se nos reportarmos ao videoclipe de National Anthem, lá está Lana interpretando Jaqueline Kennedy, a esposa fiel, e a amante, Marilyn Monroe, de um homem todo-poderoso, no caso o presidente Kennedy.

Videoclipe de Kinda Outta Luck

Elaine também é uma mulher-bruxa transitando entre sua beleza estonteante e a necessidade de um homem a seu lado. Em uma cena bastante interessante, a personagem está tomando um brunch com a corretora de imóveis Trish (Laura Waddell) quando elas engatam uma conversa sobre amor. Elaine faz um discurso apaixonado sobre o homem ideal, aquele pelo qual a mulher faria qualquer coisa para atender ao que ele espera dela. Quando ela termina de falar, Trish contrapõe seu discurso com a seguinte pergunta: “E nós? O que fazemos por nós? Temos de fazer algo por nós.” Dessa forma, a personagem funciona como um contraponto à Elaine, especialmente por ser casada com o homem dos sonhos e não ter precisado de magia para conseguir isso. Como ela diz:

Ele me ama pelo o que sou.

Elaine não aceita a ideia de que o marido de Trish possa amá-la sem todos os apetrechos físicos e psicológicos que fazem um homem se apaixonar por uma mulher. Isso é bastante interessante, pois dialoga de certa forma com a persona de Lana del Rey. Em suas músicas, ela expõe uma ideia bastante errônea sobre o amor, ou seja, a lógica de que amar é sofrer, o que dá margem para comportamentos abusivos. Já em The love witch, também há uma lógica invertida do amor, representada pela idealização da mulher perfeita. A perfeição está ligada à correspondência daquilo que um homem espera de uma mulher: beleza e devoção a ele.

O feitiço vira contra o feiticeiro: a crítica à masculinidade

Se Elaine tem poderes mágicos, por que seus feitiços, apesar de bem-sucedidos, acabam se virando contra ela?

É aí que entra a grande sacada de The love witch.

Ao enfeitiçar todos os homens que passam pela trama, algo muito interessante acontece: as coisas fogem do controle. Os homens ficam malucos — mesmo. A primeira vítima de Elaine, um professor universitário de literatura, não consegue pregar os olhos à noite. Ele chama por Elaine como se fosse uma criança renitente e mimada, além de ter espasmos por causa da ausência dela. No dia seguinte, o homem morre. Morre de um ataque cardíaco, tomado pela emoção do sentimento por Elaine.

O segundo homem da nossa trama é o marido de Trish, que acaba tirando a própria vida por causa da incapacidade em lidar com seus sentimentos. Ele não consegue entender o que se passa em seu coração e acaba se matando na banheira.

Ambos os homens tinham carreiras pra lá de interessantes, o professor, inclusive, no primeiro encontro com Elaine, está andando com uma aluna, emulando a aura do professor de humanas ™ que é irresistível por causa de seu nível intelectual. Quando Elaine e ele jantam, tomamos conhecimento de que ele ensina literatura medieval. Como, então, alguém tão sensível ao ponto de lecionar literatura não consegue lidar com os próprios sentimentos?

Ao retirar das mãos de Elaine a responsabilidade direta pelas mortes dos homens da trama, Anna Biller realiza uma crítica ácida à masculinidade. Porque, no fim das contas, é ela quem provoca a morte desses homens. Um homem é criado para ser macho, bruto e não demonstrar sentimentos. Se ele não se encaixa nessas características, é taxado de veado. A masculinidade está por todos os lados, dizendo como os homens devem ser e se comportar.

Elaine e Trish.

O sentimento por Elaine faz com que esses homens revejam sua masculinidade através dos sentimentos despertados por uma mulher, e isso é tão insuportável que a morte parece a única solução. Anna Biller reverte o estereótipo de que as mulheres são sentimentais demais para demonstrar que os homens ainda não estão preparados para lidar com suas emoções. Em contrapartida, as mulheres da trama, Trish e Elaine, sabem administrar os sentimentos, elas são racionais e fogem à regra de como as mulheres são retratadas no cinema. Como a própria Anna disse nesta entrevista:

Os homens são conhecidos por serem muito menos sentimentais do que as mulheres, mas, pela minha experiência, eles são muito mais emotivos. E é por isso que eles não conseguem, ou não podem, abrir essa porta — isso os destruiria. E é o que mata todos os homens no meu filme — entrar em contato com os próprios sentimentos.

Por mais Annas Billers na indústria do cinema

É impossível não falar sobre a mulher por trás dessa obra-prima de 2016. Em uma indústria cinematográfica que ainda se parece com o clube do bolinha, Anna Biller nos surpreende por ter dirigido, escrito, ter feito os figurinos e produzido The love witch. Segundo os números do Centro de Estudos da Mulher na TV e no Cinema, de todas as produções audiovisuais americanas, apenas 11% tiveram mulheres na direção. Isso quer dizer que as histórias ainda estão sendo contadas sob uma perpectiva masculina.

The love witch levou sete anos para ser concluído. Em uma era em que a informação é digerida rápido demais e tudo conta com um prazo de validade extremamente curto, esse número é surpreendente. Anna quis cuidar de cada detalhe do filme, nem que isso demorasse anos, como foi o caso. As pinturas de Elaine são de autoria da diretora, e ela trabalhou ao lado de M David Mullen para reproduzir os ângulos clássicos de câmera. Uma gestação que deu à luz a um bebê lindo, diga-se de passagem.

Anna não está interessada que The love witch seja taxado de exploitation. Para ela, não é a mesma coisa, até porque aqui temos a visão de uma mulher sobre essa tema. O espectador desatento pode se deixar enganar pela suposta homenagem do filme, mas o que ela quer mesmo é contar a história pela perspectiva de uma mulher sujeita ao patriarcado:

Não posso entrar na mente de um produtor nos anos 60 que está filmando exploitation porque aqueles filmes eram feitos para o prazer masculino. Eles não incluem mulheres como espectadoras, enquanto um filme como Marnie, a ladra o faz. Eu não tenho conexão com o exploitation, pois eu o vejo como um precursor da pornografia.

Todos os motivos elencados acima fazem The love witch um filme imperdível, seja por desafiar a indústria do clube do bolinha ou por sua estética fantástica. Infelizmente, os outros filmes de Anna Biller são raríssimos de encontrar e me deixaram com vontade de explorar a filmografia dessa mulher fantástica. Viva, filme de 2001, aborda de forma cômica os efeitos da revolução sexual nas mulheres. Enfim, isso é assunto para um próximo texto quem sabe.

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Jess
Cine Suffragette

Tradutora, noveleira e apaixonada por cinema.