Capitães de Abril (1999), de Maria de Medeiros

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readApr 25, 2024

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Cinquenta anos atrás, ocorria um marco da democracia, pois uma das mais ferrenhas ditaduras do mundo chegava ao fim: o Estado Novo Salazarista em Portugal. A Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974 colocou um ponto final num regime ditatorial que durou 48 anos, sendo que Oliveira Salazar ficou no poder entre 1933 e 1968. Tal marco, importantíssimo na história de Portugal, virou peça nas mãos do mestre Saramago e tinha também que virar filme: além de pelo menos oito documentários, a Revolução foi retratada no cinema de ficção — mas com um pé na realidade — na película “Capitães de Abril”.

A professora universitária Antónia (Maria de Medeiros) é uma mulher politizada e consciente, que fala com desenvoltura sobre os operários e os desmandos de Portugal em suas colônias na África, enquanto o país não é capaz de baixar altos índices de analfabetismo. Ela é divorciada e seu atual namorado está preso por discordar do regime.

Paralelos à história de Antónia agem os jovens capitães de diversos regimentos. Sim, porque esse foi um raro caso em que os militares agiram para retomar a democracia, não para acabar com ela, como aconteceu na América Latina. Claro, existiram militares reacionários que ficaram contra o movimento, a exemplo, no filme, do Brigadeiro Pais (Luís Miguel Cintra).

Dentre os militares se destacam Salgueiro Maia (Stefano Accorsi), o bom mocinho que existiu na vida real, e Manuel Novais (Frédéric Pierrot), ex-marido de Antónia — com quem tem uma filha, Amélia — que teve um filho durante uma missão na África e guarda muitos segredos sobre este período de sua vida no continente.

Um personagem fala que “Portugal sempre será uma nação multicostal e plurirracial”. O país já foi potência ultramarina, com colônias na América, África e Ásia. O movimento de independência das colônias foi de suma importância para deflagrar a revolução de 25 de abril, uma vez que os líderes desta foram quase todos combatentes na guerra colonial — hoje conhecida como Guerra do Ultramar -, como mostrado no filme. Após o fim da ditadura, também teve fim a dominação portuguesa nas colônias africanas, com a independência delas.

O roteiro, ou como sai escrito no filme “argumento”, é de Maria de Medeiros e Eve Deboise. Com seu alto teor político e revolucionário, “Capitães de Abril”, na forma, se assemelha a um filme de guerra e por isso não parece ser um “filme de mulher”. Só que não existe, por mais que alguns apregoem o contrário, o conceito de “filme de mulher” e este é um ótimo exemplo de que mulheres roteiristas e diretoras podem transitar por todos os gêneros cinematográficos com sucesso.

Maria de Medeiros, cujo ápice na carreira internacional foi um pequeno papel em “Pulp Fiction” (1994), é uma das três filhas de um maestro. Seu primeiro trabalho no cinema data de 1981, quando ela tinha apenas 16 anos. Sua filmografia conta também com dez títulos como diretora, sendo o mais recente “Aos Nossos Filhos” (2019), gravado em solo brasileiro.

Até a presente data, Portugal nunca foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional — categoria anteriormente denominada Melhor Filme em Língua Estrangeira — mas “Capitães de Abril” fez sua estreia em Cannes na Mostra Un Certain Regard. Uma co-produção entre Portugal, Espanha, França e Itália, o filme ganhou prêmios no Festival de Bordeaux, na França, e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Uma mulher entrevistada após a Revolução deseja menos repressão e que “a felicidade de todos seja a felicidade de cada um”. Após seu depoimento, vemos Antónia se juntando ao povaréu com a família, indo em direção a uma multidão de mulheres que clamam por “liberdade sexual”, “não ao aborto clandestino” e “homens na cozinha”. Demandas feministas não tinham vez durante a ditadura e muitas só foram conquistadas recentemente, como o direito ao aborto, obtido em 2007.

Os gritos do povo, em determinado momento, dizem “fascismo jamais”. Entretanto, como em praticamente todo o resto do mundo, Portugal está assombrado pelo fascismo, com a ascensão do partido de extrema-direita Chega. O filme nos lembra, com este grito, que é preciso permanecer atento e forte.

O cinema é uma ótima ferramenta para contar a História — essa História lusófona com H maiúsculo, da qual fazemos parte mas que por vezes parece escapar de nossa compreensão. E serve também para gritar dez, vinte, trinta, quarenta, cinquenta anos depois: “ditadura nunca mais”.

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