Chão de Fábrica (2021), de Nina Kopko, e outras trabalhadoras unidas

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
8 min readMay 1, 2022

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“Ao longo da maior parte da história, Anônimo foi uma mulher” — Virginia Woolf

O brilhante curta-metragem “Chão de Fábrica”, da diretora Nina Kopko, termina — e isso não é spoiler — com fotos históricas tiradas da grande greve dos metalúrgicos que aconteceu no ABC Paulista em 1979. A quantidade de mulheres em todas as fotos apresentadas pode ser contada nos dedos. Mulheres, entretanto, não são necessariamente minoria no ativismo, e por muito tempo formaram uma porcentagem considerável do trabalho fabril.

Começando com visual setentista, “Chão de Fábrica” acompanha o horário de almoço de quatro metalúrgicas. Elas não são amigas próximas, e inclusive as outras três tratam com alguma distância Renata (Carol Duarte). E é Renata a mais engajada: quando as outras começam a comentar sobre a greve que acontecerá no dia seguinte, ela as incita a participar, enquanto Joana (Helena Albergaria) fala o contrário, para todas irem trabalhar para não correrem o risco de perder o emprego.

Mas este não é um filme em que a trama divide as personagens em protagonistas e antagonistas. Não é Renata contra Joana, muito menos Renata contra “as outras”. Conforme o curta progride, as mulheres ouvem um discurso de um grande líder sindical e começam a trocar confidências. O filho de Joana ficou doente e, por ter de ir visitá-lo, lhe foi descontado um montante significativo do salário. Renata fala sobre suas preferências românticas e não é julgada. A novata Irene (Alice Marcone) conta algo que vai mudar sua vida. E Miriam (Joana Castro), que besuntou o corpo de Coca-Cola para se bronzear, diz que quer voltar para o Rio de Janeiro e sofre com uma lesão por esforço repetitivo.

O curta-metragem foi inspirado numa cena da peça “O Pão e a Pedra”, sobre as greves de 1979 no ABC, e teve colaboração das quatro atrizes principais no roteiro. Conforme revela a diretora e co-roteirista Nina Kopko, as mulheres eram 30% da força de trabalho do ABC na época das greves, embora as imagens da época, mostradas no final do curta, pareçam mostrar o contrário. Mas logo mais chegaremos no assunto da greve histórica.

Ao final do curta, um aviso: “este filme foi realizado sem nenhum tipo de financiamento, com elenco e equipe técnica composta por 95% de mulheres”. Esta equipe que mostra que cinema — bom cinema — é substantivo feminino está sendo reconhecida: “Chão de Fábrica” vem acumulando prêmios por onde é exibido. Foi eleito melhor curta-metragem no Festival de Brasília, onde ganhou outros quatro prêmios, no Cine Ceará e na eleição da Associação Brasileira dos Críticos de Cinema. Esse sucesso rebate a máxima conservadora de que “quem lacra não lucra”. Com uma infinidade de referências progressistas, umas mais e outras menos sutis, o curta é o tipo de obra que faria qualquer conservador torcer o nariz. Seu sucesso mostra com clareza de que lado a arte e os críticos de arte estão no período em que vivemos.

Um olhar para o passado: mulheres, Revolução Industrial e os irmãos Lumière

Nos primórdios da Revolução Industrial, muitas mulheres foram contratadas para trabalhar em fábricas, em geral na indústria têxtil — em algumas cidades fabris, havia mais mulheres trabalhando nas fábricas que homens. Elas ganhavam menos que os homens — em geral, metade do salário deles — e estavam sujeitas a jornadas de trabalho muito longas — jornadas de até 16 horas por dia, inclusive para meninas — e serviços perigosos, como o manejo de máquinas que não raro pegavam os cabelos compridos das mulheres e, assim, escalpelavam as trabalhadoras.

Um filme que permite um vislumbre, ainda que muito breve e raso, da vida das trabalhadoras fabris na Era Vitoriana é “A Saída dos Operários da Fábrica Lumière”, um dos primeiros filmes exibidos pelos irmãos Lumière em sua histórica mostra de dezembro de 1895. Filmado em fevereiro, exibido para uma plateia seleta em março e “melhorado” de acordo com as sugestões dos primeiros espectadores, o filme de menos de um minuto tem um título autoexplicativo. Salta aos olhos a grande quantidade de mulheres saindo da fábrica — prova não fotográfica, mas cinematográfica de que elas compunham parte significante da força de trabalho operária.

Dando voz a elas: “Trabalhadoras Metalúrgicas”, de Olga Futemma e Renato Tapajós

O curta-metragem “Trabalhadoras Metalúrgicas”, de 1978, foi dirigido por Olga Futemma e Renato Tapajós. O filme já começa com uma mulher falando “Em outro sentido, eu queria ser homem. Porque a mulher enfrenta muitos problemas.” O que se segue é uma breve contextualização histórica: desde a inauguração das primeiras indústrias no Brasil, mulheres ganhavam menos que os homens, mesmo enfrentando condições de trabalho mais árduas e uma disciplina mais rigorosa. Foi aí que começaram as reivindicações por pagamento igualitário entre os gêneros — uma reivindicação que ainda era feita pelas mulheres em 1978.

Passando pelo 1º Congresso da Mulher Metalúrgica de São Bernardo do Campo e Diadema, ouvimos as mulheres falando sobre suas condições de trabalho: sem equipamentos de proteção, em salas não arejadas, sendo punidas pelos menores erros, sem receber hora extra, sem assistência médica, sofrendo abuso moral e tendo uma dupla jornada na fábrica e em casa. Depois do congresso, algumas mulheres encontram outro problema: são demitidas por faltar ao trabalho para ir ao evento. Mas o saldo é positivo: uma das entrevistadas menciona o evento como tendo sido uma “escola” para ela.

“Trabalhadoras Metalúrgicas” é o único filme que Olga Futemma faz como co-diretora e não diretora única. Em entrevista ao site Another Screen — streaming onde o filme e outros curtas-metragens sobre trabalho estão disponíveis para ver gratuitamente — Olga comenta que não gosta muito do filme porque ele não tem um centro narrativo: não é nem sobre o congresso nem sobre as metalúrgicas. Ela também se arrepende por não ter dado voz a outras reivindicações além do salário igual: como se “ficasse mais fácil” conseguir igualdade nas outras esferas se a igualdade econômica fosse alcançada (nas palavras da própria Olga).

O que é isso, companheiras? — Trabalhadoras em greve

Em “Chão de Fábrica”, Miriam diz, quando confrontada com a realidade de que elas recebem a metade do salário dos homens, que “esta greve é de homem para homem”. Nem sempre foi assim: a greve foi criada no Império Romano e esteve presente, com ampla participação feminina, desde o começo da Revolução Industrial.

Conforme avançava a Revolução Industrial, as trabalhadoras começaram a se organizar. Lembremo-nos de que as mulheres sequer tinham direito ao voto na época, mas elas se organizavam em proto-sindicatos e faziam greves. A primeira greve só de mulheres operárias aconteceu em 1828 em New Hampshire, Estados Unidos, e nas décadas seguintes foram documentadas greves organizadas por mulheres no México, na Inglaterra, no Império Austro-Húngaro e na Alemanha, com posterior garantia dos direitos exigidos pelas grevistas. Até mesmo a Revolução Russa de 1917 teve início, em fevereiro daquele ano e indo contra ordem dos bolcheviques, através de uma greve encabeçada por mulheres.¹

As greves de 1979 no ABC Paulista foram assunto do documentário “ABC da Greve” (1990), de Leon Hirszman, filme que influenciou “Chão de Fábrica”. Obra póstuma, “ABC da Greve” começa narrando a grande greve de março de 1979, iniciada no dia anterior à posse do general Figueiredo como presidente, o último da ditadura militar. Os primeiros sons do filme são de um discurso de Lula, maior líder sindical da história do país e figura também presente, em imagem, em “Trabalhadoras Metalúrgicas”, e citado por nome em “Chão de Fábrica”.

Se saltava aos olhos a grande quantidade de mulheres saindo da fábrica dos Lumière, nos registros de Hirszman há poucas delas. A maioria das lideranças sindicais, senão todas, são homens, mas as mulheres também se fazem ouvidas. Logo no início do filme uma delas tenta convencer os companheiros a continuarem a greve, citando as condições de trabalho terríveis em comparação com a boa-vida dos patrões. Nas cenas de multidões, as mulheres estão em menor número — exceto na sequência da missa em que o padre reza pelos metalúrgicos. Num discurso de Lula, a única mulher à vista é a fotógrafa que está ao seu lado, tirando fotos do povo. Na fila de empregos, do lado de fora da fábrica, e na das refeições, do lado de dentro, é que vemos mais mulheres. Quando perguntadas, algumas operárias afirmam que participaram da greve, e fariam nova greve se necessário. Elas são maioria, também, nas ruas das favelas do ABC Paulista — onde uma mulher diz que, depois de se mudarem para São Paulo, a terra das oportunidades, a vida da família só piorou. A mulher que fala é mãe de seis filhos, e é aí que cai a ficha do porquê relativamente poucas mulheres participaram das greves: como elas iam transformar a jornada dupla de operárias e mães em jornada tripla, adicionando a atividade grevista em seu dia a dia?

A época retratada em “ABC da Greve” é anterior à redemocratização do Brasil. Num discurso, um líder coloca os sindicatos como atores que pedem pela volta da democracia, excluindo-se aí os sindicatos pelegos que imperavam na época. Naquele momento — e no nosso atual momento também — a organização dos trabalhadores e a greve são instrumentos de defesa da democracia. A desculpa do governo para parar as greves é preservar “a paz da família brasileira e a ordem social” — você já ouviu algo parecido recentemente?

Começamos o texto com uma citação de Virginia Woolf sobre, durante a maior parte da história, “anônimo” ter sido uma mulher. É parte da terceira onda do feminismo, esta que estamos vendo e vivendo agora, fazer o resgate das mulheres ao longo da história, tanto das personalidades individuais que foram apagadas pelo cânone histórico quanto da coletividade feminina que esteve presente, em geral não apenas como meras espectadoras, de grandes eventos da História. Nina Kopko define seu curta como uma reposta aos outros filmes, de Futemma / Tapajós e Hirszman. E é uma resposta que traz mais questionamentos, sobre as figuras anônimas que fizeram parte da História — figuras que, através da ficção, “Chão de Fábrica” resgata com maestria.

¹ CARROLL, Berenice. “Shut Down the Mills!”: Women, the Modern Strike, and Revolution. Disponível em: http://publici.ucimc.org/2012/03/shut-down-the-mills-women-the-modern-strike-and-revolution/

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