Clássicos queer: Diferente dos Outros (1919)

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readJun 16, 2023

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A Alemanha foi o país onde teve início o movimento do orgulho LGBTQIA+, embora não com este nome. Ainda em 1897 a lei injusta — chamada Parágrafo 175 do Código Penal — que criminalizava relações entre pessoas do mesmo gênero estava sendo questionada por um movimento organizado liderado pelo Dr Magnus Hirschfeld. Quando o cinema apareceu e se popularizou, Dr Magnus fez uma parceria com o diretor Richard Oswald para fazer “filmes esclarecedores” sobre assuntos polêmicos. “Diferente dos Outros” (1919) é um destes filmes, um filme que foi censurado e banido, mas sobrevive numa versão truncada — o que é infinitamente melhor que não sobreviver em versão alguma.

Paul Körner (Conrad Veidt) é diferente dos outros: ele é homossexual e não tem nada de errado com isso. Claro, ele tentou hipnose para curar sua “doença”, até que um sexólogo (o próprio Dr Hirschfeld) garantiu que não havia nada para ser curado. Paul é violinista e tem um relacionamento com seu aluno, Kurt Sivers (Fritz Schulz). Um dia, o chantagista Franz Bollek (Reinhold Schünzel) vê o mestre e o pupilo andando pelo parque de mãos dadas e decide chantagear Paul. Agora, Paul ou tem de pagar o chantagista ou arriscar um envolvimento num escândalo que pode fazer dele um pária.

Uma sequência em flashback nos é apresentada, com Kurt Giese interpretando uma versão mais jovem de Paul Körner. Neste flashback, Paul é mostrado como um amigo mais que íntimo de outro garoto num colégio interno. Os dois são pegos na mesma cama conversando, e Paul é expulso. Na universidade, ele é avesso a reuniões sociais, em especial aquelas com mulheres flertando. É aí que ele busca ajuda primeiro com a hipnose, depois com o sexólogo.

Durante a palestra do sexólogo, ele fala sobre homens femininos e mulheres masculinas, sem utilizar o termo “trans”. Em uma das fotos mostradas pelo médico, a palavra “transvestite” é usada — foi o próprio Dr Hirschfeld que cunhou o termo “transvestism” — como uma maneira de comprovar o comprometimento do médico “com o trabalho pela aceitação de diferentes tipos de práticas sexuais consideradas desviantes, incluindo homossexualidade, transexualidade, cross-dressing, bissexualidade e fetichismo”.

“Você não deve pensar mal do seu filho porque ele é homossexual. Ele não é de maneira nenhuma culpado pelo sua orientação. Não é um vício nem um crime, de fato, nem mesmo uma doença, mas sim uma variação, um dos casos limítrofes que acontecem frequentemente na natureza”
“Seu filho não sofre com a condição, mas sim com o falso julgamento dela. Essa é a condenação legal e social de seus sentimentos, junto com concepções erradas difundidas sobre sua expressão [dos sentimentos]”
“Amor pelo mesmo sexo pode ser tão puro e nobre quanto amor pelo sexo oposto. Esta orientação pode ser encontrada entre muitas pessoas respeitáveis em todos os níveis da sociedade.”

No começo e no fim do filme, o suicídio é apresentado como a única saída para homossexuais que caíram em desgraça. De fato, taxas de suicídio entre indivíduos LGBTQIA+ são altas, e uma pesquisa recente demonstrou que quase metade — 45% deles, para ser precisa — dos jovens LGBTQIA+ já pensou seriamente em suicídio pelo menos uma vez. A porcentagem é mais alta para indivíduos indígenas e negros, se comparados com jovens brancos.

Na sequência em flashback, descobrimos que Paul conheceu Franz, o chantagista, num baile a fantasia. Os dois conversaram no baile e concordaram em ir até a casa de Paul, onde Franz revelou suas reais intenções, chantageando Paul pela primeira vez. Por essa sequência podemos inferir que Franz é um chantagista profissional que vai a bailes queer apenas para ganhar mais dinheiro — fazendo mais vítimas. Obviamente, há hoje pessoas como ele, homofóbicos e transfóbicos invadindo espaços que deveriam ser seguros para a comunidade LGBTQIA+ com a única intenção de fazer essas pessoas sofrerem.

Em 1933, nazistas invadiram o instituto do Dr Hirschfeld e queimaram 12 mil livros e mais de 35 mil fotografias. É possível que cópias de “Diferente dos Outros” tenham sido destruídas neste ataque. O filme desapareceu dos arquivos alemães — a pesquisadora Lauren Pilcher diz que “o filme feito na República de Weimar foi censurado e apagado dos arquivos alemães porque ele convidava o público a ter prazer estético e erótico em cenas de resistência pública e privada ao Parágrafo 175” — e hoje só podemos ter a versão truncada por causa dos esforços do Filmmuseum München, com as partes perdidas reconstruídas por cartelas de texto e fotos de diversos arquivos.

“Um homem com sentimentos femininos em roupas masculinas e roupas femininas”

“Diferente dos Outros” foi polêmico, mas um sucesso de bilheteria. Foi perseguido e não mudou a lei. Poucos anos após sua estreia, os nazistas chegaram ao poder com um discurso anti-LGBTQIA+. Milhões de homossexuais foram perseguidos e mandados para campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. A República de Weimar, período em que o filme foi feito, foi um último suspiro de normalidade antes que uma onda reacionária engolisse o país. Estamos experimentando algo parecido agora: depois de um tempo de avanços — como a legalização do casamento de pessoas do mesmo gênero em tantos países — um movimento reacionário está vindo e engolindo mais do que simplesmente um grupo: está engolindo todos nós. A sociedade sonhada em “Diferente dos Outros”, mais de um século atrás, ainda não existe — e há indivíduos em posições de poder agora mesmo se esforçando para que essa sociedade nunca se torne realidade. O Dr Hirschfeld fez sua parte. Agora é nossa vez de lutar por igualdade para quem é diferente.

Uma versão de 50 minutos de “Diferente dos Outros”, com cartelas de texto em inglês, pode ser vista no Internet Archive.

Referências

PILCHER, Lauren Elizabeth. Querying Queerness in the Film Archive, Tracing the Ephemeral Anders Als Die Andern (Different from the Others)(1919). Synoptique, 2015, vol. 4, no 1, p. 35.

TORCHINSKY, Rina. Nearly half of LGBTQ youth seriously considered suicide, survey finds. Available at: https://www.npr.org/2022/05/05/1096920693/lgbtq-youth-thoughts-of-suicide-trevor-project-survey

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