Culpa e Desejo (2023), de Catherine Breillat

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readNov 25, 2023

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ESTA CRÍTICA TEM SPOILERS

Há alguns diretores no cinema que, a cada nova obra, podemos esperar deles uma nova polêmica. Uma destas personalidades é a diretora e roteirista francesa Catherine Breillat. Definida no IMDb como “porno auteuriste” — algo como “autora pornô” — ela faz parte de um movimento que vem sendo chamado de New French Extremity, do qual também fazem parte Claire Denis e Julia Ducornau, com seus filmes que desafiam tabus. Depois de um filme autobiográfico, Breillat voltou a tratar do desejo carnal proibido em sua mais nova película, “Culpa e Desejo”.

No verão passado, Anne (Léa Drucker) viveu um romance tórrido. O caso extraconjugal por si só já seria escandaloso, mas há um agravante: o parceiro foi o enteado dela, o adolescente Théo (Samuel Kircher). De enteado insolente a insistente parceiro sexual, Théo quase coloca tudo a perder quando conta o segredo para o pai, Pierre (Olivier Rabourdin). Mas Anne reage, acusando Théo de inventar a história e chamando-o de monstro por isso. Aí fica a indagação: quem é o verdadeiro monstro nessa trama?

Então Anne, que sempre acompanhou como advogada casos de abuso sexual contra menores, pode se tornar ré num processo semelhante. É no diálogo com Théo sobre a possibilidade de ele denunciá-la que Anne mostra a que veio: cerebral, fria e calculista, ela afirma que nunca acreditarão no garoto. Meninos e homens vítimas de abuso sexual são notória minoria nos tribunais, graças, entre outras coisas, a uma cultura machista que emascula aqueles que não dão seu consentimento para o ato sexual. Mas não é isso que acontece em “Culpa e Desejo”: em todas as ocasiões, é Théo que procura por Anne, de modo que ele não pode ser considerado vítima. E é aí que jaz a provocação de Breillat.

Quando Anne conta que comprou um computador para Théo, Pierre diz que eles deveriam ter discutido primeiro. Bem-humorada, ela retruca, perguntando se têm que discutir antes dela lavar as roupas do enteado. É um momento descontraído, mas que revela uma verdade: a mulher é relegada ao papel de cuidadora dos demais habitantes de uma casa sem que isso seja discutido. A conversa sobre o trabalho não-remunerado e muitas vezes invisibilizado de cuidado que é feito majoritariamente por mulheres teve seu ápice recentemente, quando o assunto foi tema da redação do Enem. Para além do exame, fica estampada aqui a necessidade de que essa discussão continue em meio à sociedade civil.

Anne e Pierre têm duas filhas adotivas, Angela e Serena. Anne conta que não podia ter filhos por causa de um aborto que fez na juventude, algo que causou “um estrago” nela. Na França, o aborto é legalizado desde 1975, mas isso não impede que alguns poucos ainda sejam feitos ilegalmente, pelo tabu que ainda ronda o procedimento que é simples e pode ser feito com segurança no país da Torre Eiffel.

“Culpa e Desejo” é remake do filme dinamarquês “Rainha de Copas”, muito elogiado pela crítica. O filme francês é bastante fiel ao original, com exceção do desfecho, que é mais duro na película dinamarquesa. Catherine Breillat co-escreveu o roteiro com Pascal Bonitzer, ex-crítico da Cahiers du Cinéma que também atua e dirige suas próprias produções. “Rainha de Copas” também foi dirigido por uma mulher, May el-Toukhy, e escrito por ela em colaboração com Maren Louise Käehne.

O filme anterior da diretora, “Uma Relação Delicada”, feito uma década atrás, traz um relacionamento entre uma mulher deficiente e um vigarista. A diretora de cinema Maud Shainberg (Isabelle Huppert, em um tour de force), ainda sofrendo com as sequelas de um AVC, contrata Vilko (Kool Shen), ex-presidiário e não ator profissional, para ser o astro de seu próximo filme. A relação deles nunca se torna carnal — e caso se tornasse seria interessante abordar o tabu da sexualidade das pessoas com deficiência — no entanto se desenvolve uma dependência mútua: Maud quer a atenção de Vilko e Vilko quer o dinheiro de Maud. De coincidência com o filme mais recente de Breillat, só um detalhe: ambas as protagonistas de “Uma Relação Delicada” e “Culpa e Desejo” têm nus enfeitando seus quartos de dormir — o que pode ou não, dependendo de quem vê, dizer muito sobre elas.

Por que Breillat demora dez anos para fazer outro filme? A resposta está em “Uma Relação Delicada”: trata-se de um filme autobiográfico. A diretora também sofreu um AVC grave, deixando-a paralisada e frágil, a ponto de ser vítima de um vigarista que lhe tirou dinheiro. A volta aos sets de filmagem, por isso, demorou tanto, mas compensou: Breillat afirma que recobrou seu amor pelo cinema durante as filmagens de “Culpa e Desejo”. Se isso significar que não precisaremos esperar mais uma década para uma nova provocação em forma de filme, é uma boa notícia.

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