Dois documentários sobre pessoas trans

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
8 min readMar 10, 2022

--

Transversais (2021) e Transhood — Crescer Transgênero (2020)

(“Transversais” — foto de Juno Braga e Iinga Acacio)

É possível ensinar empatia? Eu digo que sim, e digo mais: é possível ensinar empatia usando o cinema como ferramenta. Não há gênero que estimule mais empatia que o documentário, quando conhecemos uma pessoa real na tela e, ao longo da projeção, passamos a nos preocupar com ela. O documentário também é um reflexo do tempo em que é feito, e por isso encontramos cada vez mais documentários sobre pessoas trans, que vêm recebendo ataques e também alçando suas vozes cada vez mais nos últimos anos. Jogamos luz aqui em dois documentários, um brasileiro e outro norte-americano, que exercitam a empatia e contam histórias de pessoas trans.

Transversais: o filme que quase não foi

Na matemática, uma reta transversal é uma reta que tem intersecção com outra reta — são retas que atravessam outras retas. O jornalista e cineasta Émerson Maranhão nomeou seu documentário de estreia como “Transversais” por contar histórias de cearenses que têm suas vidas atravessadas pela transexualidade.

A professora Érikah fala sobre o bullying que sofreu na infância e na adolescência, e como ela não admite que isso aconteça em sua sala de aula. O enfermeiro Caio José conta que se afirmou como trans no final da adolescência, após conhecer o trabalho de ativistas como João Néry. O pesquisador Kaio menciona que o atendimento para pessoas trans no Ceará começou dentro do setor de transtornos da sexualidade de um hospital psiquiátrico. A funcionária pública Samilla diz que sua família nunca entendeu sua necessidade de transicionar, que não a chamam pelo nome social e que cada vez que a tratam assim é como uma pequena morte, arrematando com a frase “não sei se é religião, porque ignorância não é”.

Em comum, todos os entrevistados trans relatam que já sabiam desde muito cedo que eram trans — uma delas diz que tinha vergonha de sua genitália masculina — mas sua realização completa era atrapalhada por desentendimentos quanto às questões de gênero e também pelas normas de socialização aprisionantes baseadas em uma binariedade de gênero. Uma questão é a fala de Caio, que conta que sempre brincou com bolas e carrinhos quando criança, e o combustível que essa fala pode dar para mais discurso de ódio relacionado aos papéis de gênero ligados a brinquedos — afinal, não é porque uma menina brinca com carrinhos que ela é trans.

Sendo o Brasil ainda o maior país católico do mundo, e um país que vê o crescimento rápido das religiões evangélicas, “Transversais” faz muito bem em tratar de transexulidade e religiosidade. O foco aqui é no candomblé, que foi objeto de estudo de Kaio, e religião onde ele achou aceitação irrestrita — mas nem todos têm a mesma sorte que ele nos terreiros. Por outro lado, a família de Caio deixou de ser convidada para fazer parte de grupos cristãos quando eles deixaram de ser, nas palavras de um fiel, uma “família tradicional”.

(“Transversais” — foto de Juno Braga e Iinga Acacio)

Samilla, enquanto funcionária pública, foi fundamental para a aprovação de leis na cidade de Pacatuba, Ceará, que garantem o ensino de igualdade de gênero e combate à LGBTfobia nas escolas. Como ela faz questão de lembrar, se nas outras cidades houve retrocesso quanto às questões de gênero na educação, em Pacatuba houve apenas avanço, e um avanço que não pode ser desfeito, já que a lei que ela ajudou a aprovar é irrevogável. Mais do que isso: é mudança que começa em 2005, quando questões de gênero e LGBTfobia sequer eram discutidas por grande parte da população como o são hoje.

Além dos entrevistados já citados, “Transversais” entrevista também Mara Beatriz e Jânio, pais de uma adolescente trans. Eles mencionam a rejeição por parte da família estendida e o medo de que a filha seja alvo de preconceito ou mesmo de um crime de ódio. A preocupação maior deles é para com a felicidade da filha.

(“Transversais” — foto de Juno Braga e Iinga Acacio)

“Transversais” foi vítima do discurso de ódio direto do governo Bolsonaro. Em uma live de 2019, o presidente criticou projetos na Ancine que tratavam de questões LGBTQIA+, atacando diretamente uma série de TV que estava em desenvolvimento, sobre cinco pessoas trans do Ceará. A série não recebeu aportes da Ancine e teve assim que se transformar: de série virou documentário em longa-metragem — e foi assim que “Transversais” sobreviveu ao ataque direto do governo e vem fazendo sucesso em festivais.

Transhood: uma realização falha

Outra produção recente que trata de crianças e adolescentes transgênero é o documentário “Transhood — Crescer Transgênero”, de 2020. Seu título faz referência ao filme “Boyhood” (2014), gravado durante 12 anos. “Transhood” foi gravado durante cinco anos, acompanhando por esse período a vida de quatro crianças de Kansas City.

Jay, de 12 anos e meio, diz: “Eu sei que há pessoas por aí como eu. […] Elas também podem estar se escondendo”. Leena, de 15, afirma que “é difícil passar pela puberdade sendo uma pessoa que você não é”. Avery, de 7, estuda em casa porque sofreu bullying na escola e, nas horas vagas, é uma pequena ativista. Quem também é educada em casa é Phoenix, de quatro anos.

Como dito pela mãe de Avery, crianças trans não passam por intervenções antes da puberdade, mas sim por uma transição social — de nome, de pronomes, de roupas e acessórios. Mesmo assim, a família de Avery sofreu preconceito e perdeu amigos e familiares durante sua transição social. Bryce, mãe de Jay, também viu seus familiares se afastando, e inclusive sua mãe acha que ela é uma abusadora de crianças, mas ela fica firme: “prefiro ter um filho saudável que uma filha suicida”.

Mas da família também pode vir apoio. A avó de Leena sempre a leva para fazer as unhas e lhe dá conselhos amorosos — Leena tem um namorado que sabe que ela é trans e a apoia totalmente… ou pelo menos isso é o que ele diz. Jay, por outro lado, não contou para sua namorada Mildred que é trans, e ela acaba descobrindo quando recebe fotos de Jay como menina através do Snapchat. Depois de dez meses, a mãe de Mildred a proíbe de ver Jay. Se a decepção amorosa é o que mais afeta Jay, a decepção maior de Leena vem quando ela é cortada de um desfile de roupas de banho após dizer que é trans.

(“Transhood” — foto: reprodução)

Numa cena filmada em 2015, Debi, mãe de Avery, diz que há muito a se fazer para proteger as pessoas trans não-brancas, porque houve retaliação contra as pessoas trans, mesmo com avanços de questões transgênero no governo Obama. No ano seguinte, a esperança foi substituída por medo de um lado e ódio do outro. Em 2017, Avery foi capa de uma edição especial sobre gênero da revista National Geographic. Os ataques a ela começaram em seguida, inclusive com pessoas definindo a capa como “pedofilia”. Avery passa a não querer mais ser uma “atração” e diz que a exposição está arruinando sua vida.

Mas há também esperança. Para Jay, uma figura de apoio aparece em seu cabeleireiro também transgênero. E há um revés no documentário: ao entrar para a escola, Phoenix passa a se identificar novamente como menino. Sua mãe fica aliviada, culpa o pai por ter aceitado a “fase trans” tão facilmente e diz que pessoas trans podem existir, mas isso é uma doença mental… mas é possível viver bem com doenças mentais, ela ainda faz questão de frisar! Se Phoenix realmente não for trans, ele se livrou de viver a vida inteira com uma mãe que, no fundo, não o apoiava.

É até chocante a presença no documentário das falas transfóbicas da mãe de Phoenix. E aí mora o principal defeito de “Transhood”, que empalidece ao ser comparado com “Transversais”: em “Transhood”, as pessoas trans não falam por si mesmas, são seus pais que falam por elas. Há momentos em que o documentário realmente parece focar nas mães das crianças e adolescentes, abandonando a ideia de mostrar como é crescer transgênero.

As diferenças e semelhanças entre Brasil e Estados Unidos ficam muito evidentes nestes dois documentários. A saúde é fonte de contas caríssimas nos EUA, e vemos isso quando Bryce conta que um exame custou mais que o que ela ganha em um mês de trabalho. Tudo depende se o seguro cobre ou não os medicamentos, exames e tratamentos — e em geral, é a pessoa que tem de pagar preços exorbitantes por tudo isso. O mesmo não acontece no Brasil, onde o atendimento deveria ser gratuito pelo SUS. Há ainda diversos problemas no tratamento de pessoas trans pelo SUS — como o fato de poder começar terapia hormonal apenas após os 18 anos e as já esperadas enormes filas de espera. Essas são só algumas das questões enfrentadas pelas pessoas trans no sistema de saúde brasileiro.

Há poucas semanas o governador do Texas sancionou uma lei que pede para professores e outros adultos denunciarem crianças trans para que seus pais sejam processados por “abuso de menor”. Enquanto os pais estão sendo processados, a guarda dos filhos lhes é retirada e as crianças e adolescentes irão para abrigos. Em outros estados dos EUA, políticos conservadores vêm introduzindo projetos de lei que atacam jovens trans e seus direitos, por exemplo, ao banir livros com personagens LGBTQIA+, dificultar o acesso de pessoas trans aos cuidados médicos básicos e aos bloqueadores hormonais e proibir as escolas de falarem sobre transexualidade.

Em uma cena de “Transhood”, Leena lê um comentário transfóbico na internet que pergunta “o que aconteceu com o mundo?”. Ela responde: “o que aconteceu com o mundo é que ele se tornou um lugar melhor”. E por mais que queiram — que tentem! — fazer o mundo voltar a ser o que era, continuaremos lutando para que o mundo seja um lugar melhor, sim, para todas as pessoas.

O pai de Caio em “Tranversais” diz que “uma das maiores provas de amor é a gente aceitar as pessoas como elas são, não como eu ou a gente gostaríamos que fossem”. É essa aceitação que incomoda o governo brasileiro, é essa aceitação, esse carinho, essa humanização que incomodaram e por isso “Transversais” quase não foi realizado. Ter empatia pode ser revolucionário e subversivo — ainda mais nos nossos tempos.

--

--