Dois Documentários Sobre Sorofobia

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readNov 29, 2021

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“Carta para Além dos Muros” (2019) e “Deus tem AIDS” (2021)

AIDS. Uma palavra, quatro letras, um estigma imenso. A doença que já foi sentença de morte hoje parece controlada. Só parece: o número de mortes de gays e travestis por causa da AIDS, anualmente no Brasil, é 10 vezes maior do que o número de mortes de pessoas LGBTQIA+ pela violência. Nos últimos anos, um governo irresponsável e preconceituoso voltou a refletir os estigmas sobre a AIDS e muitas pessoas concordaram, mostrando que a epidemia moral nunca acabou.

Sorofobia. Uma palavra, nove letras, um nome para classificar um preconceito. Não é uma palavra encontrada nos dicionários online Priberam, Caldas Aulete ou Michaelis, mas é algo que é sentido na pele por milhares de pessoas todos os dias. É uma palavra que deve passar a fazer parte do nosso vocabulário, e para isso dois recentes documentários brasileiros são essenciais.

Logo no começo de “Carta para Além dos Muros”, um trecho de uma reportagem é mostrada, com opiniões da população sobre a nova doença da qual se estava falando. Um homem diz que ela só acomete “os cafajestes e os invertidos”. Outro a associa à promiscuidade. E um terceiro, sorridente, diz que é “a providência divina”. São opiniões que infelizmente não ficaram nos anos 80 e continuam a ser repetidas, mais e mais, quase quarenta anos após a divulgação dos primeiros casos.

Como diz um médico, a doença foi descoberta em 1981, mas o vírus HIV só foi descoberto em 1983: foram dois anos de dúvidas. Hoje essa demora não seria possível, ou uma enxurrada de fake news surgiria neste intervalo de tempo. E um bocado de mal-entendidos também surgiu nos primeiros tempos da AIDS: sem respostas claras, muitos, inclusive médicos cheios de preconceitos, apontavam que todo homossexual contrairia a doença.

Com a desinformação, vinham propostas de curas milagrosas: uma médica menciona chás e antenas captadoras de energia que prometiam acabar com a AIDS. Nesse momento, chega a Igreja Católica como vilã: como dito pelo doutor Drauzio Varella – também vítima dos “cidadãos de bem” – em “Carta para Além dos Muros”, a atuação da Igreja, através do discurso contra o uso de preservativos, foi completamente criminosa.

A primeira casa de apoio à pessoa com AIDS surgiu em 1984, fundada por Brenda Lee, travesti e ex-prostituta. O primeiro grupo de apoio à prevenção da doença foi fundado por leigos. Nos anos 80 e 90, comissários de bordo da Varig traziam medicamentos dos EUA e pessoas da alfândega liberavam a entrada desses remédios salvadores, que ainda não eram comercializados no Brasil. Foi a pressão dos pacientes, que passaram a entrar na justiça contra o Estado, e não a boa vontade dos políticos que garantiu o tratamento gratuito do HIV pelo SUS. Estas são provas de que é a sociedade civil que faz a roda girar, as coisas acontecerem, e que depende de nós continuar lutando pelos direitos de quem tem HIV.

A campanha de lançamento do documentário “Carta para Além dos Muros” envolveu, nas redes sociais, a hashtag #PrecisamosFalarSobreIsso. A campanha se justifica: nos últimos anos, as infecções de pessoas jovens vêm aumentando. “Carta para Além dos Muros” encerra com a música de Cazuza que diz “vamos pedir piedade para essa gente careta e covarde”, enquanto mostra manchetes de 2019 sobre o desmonte do serviço de combate ao HIV/AIDS e sobre a necessidade do combate à doença “não ofender as famílias”, nas palavras do então ministro da saúde.

“Deus Tem AIDS” começa com sons de narrações de matérias jornalísticas sobre a epidemia de AIDS. Consegui distinguir as vozes de Marília Gabriela e Sérgio Chapelin, este associado a doença à modernidade e à promiscuidade. Mais uma vez, opinião que se alastrou nos anos 80 e ainda faz a cabeça de muita gente.

Um dos entrevistados, médico e soropositivo, menciona que sorofobia não inclui apenas violência contra soropositivos. Sorofobia é discriminar, excluir, é até mesmo divulgar o status de soropositivo sem o consentimento da pessoa. Outro entrevistado, artista e também soropositivo, menciona os ataques do governo ao programa exemplar de HIV/AIDS e compara o momento atual aos primeiros anos da luta contra a AIDS, dizendo que está na hora de soropositivos “porem a cara no sol” para garantir seus direitos.

O mesmo entrevistado médico diz que poucos ainda podem se assumir soropositivos, sendo privilégio em geral dos homens brancos, homossexuais e cisgênero. No documentário, temos uma maioria de entrevistados que pode ser assim descrita, com apenas duas exceções: uma mulher negra que nasceu com HIV e uma transexual.

“Deus Tem AIDS” termina com um texto sobre o desmonte governamental dos programas de HIV/AIDS e da propagação de estigmas negativos sobre a doença. O filme foi finalizado antes que Bolsonaro ligasse a AIDS à vacina contra o coronavírus – o presidente também contribuiu para a sorofobia anteriormente, ao ligar o HIV a “comportamento sexual diferenciado” e dizer que as pessoas com o vírus só dão gastos para o país.

Precisamos falar sobre isso: a AIDS é a epidemia moral que não acabou. “Carta para Além dos Muros” e “Deus Tem AIDS” são documentários tradicionais no formato, essenciais no conteúdo, sobre um tema cada vez mais relevante. Estão aí para suscitar o debate e mostrar que o preconceito mata.

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