Editorial: Nós não vamos desistir do cinema

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
3 min readOct 25, 2017

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(Imagem: reprodução)

Está sendo difícil ser cinéfilo nos últimos dias. Está sendo difícil ser humano nos últimos dias. Só não falo que está sendo difícil ser mulher nos últimos dias porque isso sempre foi algo muito difícil.

Você deve já imaginar o que causa este desconforto: as denúncias de inúmeras atrizes contra o produtor Harvey Weinstein e outros poderosos de Hollywood. A partir daí, descobrimos que a fábrica de sonhos é um local muito sórdido, especialmente perigoso para mulheres e crianças. E sempre foi assim.

Isso pode nos levar a um sentimento de descrença e desesperança com o mundo, em especial se pensarmos em todos os abusadores que continuaram livres e que jamais foram punidos. Isso pode levar muitas pessoas, que encontravam conforto e distração no cinema, a desistir deste hobby. Isso pode levar outros tantos jovens a desistir de uma carreira no mundo do entretenimento.

Isso pode mudar a maneira como os cinéfilos veem filmes. Haverá diferença, se é que já não há, na receptividade de filmes de diretores como Tarantino, Alfred Hitchcock e, em especial, Roman Polanski e Woody Allen. Os fãs de cinema clássico podem sentir a mesma sensação de soco no estômago quando descobrirem que atrizes como Judy Garland, Jean Simmons e Ginger Rogers foram assediadas, e Loretta Young foi inclusive estuprada por Clark Gable.

Panfleto dos anos 1930. Repare no conteúdo antissemita. Algumas coisas mudaram, outras continuam iguais (Imagem: reprodução)

E aí, vamos mesmo desistir do que amamos depois de descobrir tudo isso? Deixe-me contar uma coisa, pegando carona na campanha #metoo: eu já fui assediada por um homem bêbado dentro do cinema. Foi horrível. Entre as muitas coisas que passaram pela minha cabeça, uma delas foi: será que eu nunca mais vou encontrar prazer em assistir filmes? Eu tinha medo de muitas coisas, e também de que o cinema ficasse para sempre associado àquela experiência ruim.

Mas isso não aconteceu. Eu continuei amando o cinema — e, sinceramente, não sei o que seria nem onde estaria hoje se tivesse deixado de ver filmes. E, novamente, eu não vou desistir do cinema. Porque eu sei que ainda há beleza e pessoas boas na sétima arte.

Apesar do sexismo e da censura, Hollywood criou obras inesquecíveis, do divertido “Aconteceu Naquela Noite” (1934) ao grandioso “Lawrence da Arábia” (1962). Num de seus momentos mais difíceis, logo após a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha viu alguns dos mais incríveis e inspirados filmes serem feitos dentro do movimento do Expressionismo Alemão. E apesar de tudo, havia e ainda há pessoas sensacionais na indústria trabalhando por um cinema e um mundo mais justos.

Eu costumo dizer que há situações nas quais, em meio ao caos, floresce a arte. Isso pode ser reconfortante na atual situação, e inclusive também servir como mantra motivacional. Imagine você, cinéfilo, que em várias ocasiões sofre da “síndrome do impostor” ou que é muito inseguro. Lembre-se destes momentos de caos na história do cinema que geraram grandes filmes, e saiba que do seu pesadelo pode surgir algo significativo e grandioso.

O mundo do cinema precisa mudar, assim como o mundo real, e se tornar um mundo verdadeiramente humano, em que direitos sejam respeitados. Isso não será fácil, em especial quando os jogos de poder imperam, mas não podemos nos entregar ao pessimismo. Também não podemos desistir de lutar.

Pense em todas as vezes que o cinema lhe fez feliz. Pense naquele filme que marcou sua vida, que lhe tirou o fôlego, que lhe fez perceber que mãos humanas, apesar de falhas, podem criar algo de extrema beleza — meu filme para este caso é “O Pássaro Azul”, de 1918. Pense nestes momentos, e veja se ainda vale a pena desistir do cinema e também desta prazerosa fruição estética.

“O Pássaro Azul”, 1918 (Imagem: reprodução)

Nós não vamos desistir do cinema. Você vai?

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