Entre risos e lágrimas / Obvious Child (2014), de Gillian Robespierre

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readSep 28, 2017

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(Imagem: reprodução)

O que faltou para “Where are my children?” foi o protagonismo feminino. “Obvious Child”, ou “Entre risos e lágrimas”, que foi o título dado ao filme ao entrar no catálogo da Netflix, já começa com a comediante Donna (Jenny Slate) contando uma piada sobre vaginas em uma apresentação de stand-up — e a partir daí só melhora.

Donna termina com o namorado, que a traiu com uma amiga, e logo descobre que perderá o emprego porque a livraria em que trabalha vai fechar. Em uma noite, ela conhece Max (Jake Lacy), um cara bem legal, e transa com ele. Algumas semanas depois, Donna descobre que está grávida.

(Imagem: reprodução)

Desde a primeira consulta com uma médica, Donna diz que quer um aborto. E ela o faz, o que é algo positivo — há muitos exemplos de narrativas em que uma mulher desiste de um aborto na última hora. Nestas narrativas, a mensagem que está sendo passada é de que as mulheres mudam de ideia facilmente, e por isso não podem tomar decisões importantes.

Mas Donna precisa esperar duas semanas para fazer o procedimento na clínica. E, durante este tempo, ela continua se encontrando com Max, que é de fato um cara bem legal. Isso diz muito: uma personagem grávida não de um estuprador, de um abusador, mas de um homem de quem ela até gosta — mas que sabe que não está na hora de ser mãe, e não é prudente começar uma vida a dois daquele jeito. Isso vai de encontro com o dado de uma pesquisa: muitas mulheres casadas optam pelo aborto. São mulheres grávidas de seus maridos, de homens que elas amam, mas que não podem ou não querem ter mais um filho naquele momento.

(Imagem: reprodução)

A amiga e colega de quarto de Donna, Nellie (Gabby Hoffmann) fez um aborto quando era adolescente. Ela conta como foi, sem chocar ou fazer drama, e diz que não se arrepende. Não há julgamento por parte de Donna, e Nellie também não interfere na decisão da amiga. Não há conselhos dados por suposta boa vontade nem falsos moralismos.

Donna tem medo de contar o que está acontecendo para a mãe, que é uma brilhante professora universitária. Quando Donna finalmente conta, a surpresa: sua mãe também havia feito um aborto — e foi clandestino, feito em uma mesa de uma cozinha de um apartamento estranho, quando o aborto era proibido nos EUA, antes de 1973.

O que podemos aprender com esta narrativa é que nunca podemos adivinhar quem já fez um aborto. E também não podemos julgar. Estudos nos Estados Unidos apontam que uma a cada três mulheres já interrompeu uma gravidez. No Brasil, a estimativa é que uma a cada cinco mulheres com mais de quarenta anos tenha feito aborto — e isso em um país em que o procedimento é permitido em apenas três casos.

Nellie e Donna (Imagem: reprodução)

“Entre risos e lágrimas” é um filme realista? Provavelmente sim. Filme algum seria capaz de tratar universalmente do aborto, representando a experiência de todas as mulheres que já fizeram aborto.

“Entre risos e lágrimas”é um filme que normaliza o aborto. Mulheres que querem abortar abortam, isso é um fato. Em um momento em que coisas tão horríveis quanto racismo, machismo e homofobia estão sendo normalizadas, “Entre risos e lágrimas” é um exemplo do que realmente merece ser normalizado. Vale lembrar que o filme não está sozinho como bom exemplo: a série “Jane the Virgin” também trata o aborto como algo normal.

Um filme feminista e verdadeiramente representativo não é feito apenas com uma mulher na direção. É feito com mulheres escrevendo o roteiro, dirigindo, editando, produzindo e atuando. O cinema como negócio e como arte foi erguido por mulheres — e felizmente filmes como “Entre risos e lágrimas” estão voltando a estas origens que não devem ser esquecidas.

Em “Where are my children?” o homem faz a pergunta derradeira à mulher: “onde estão meus filhos?” — como se o embrião ou feto abortado fosse sua propriedade. Em “Entre risos e lágrimas”, temos uma representação bem mais positiva: Donna, Nellie e a mãe de Donna são donas de seus próprios corpos — e de seus destinos. Ao pai de Donna, resta criar fantoches. E que seja assim daqui pra frente: que as mulheres sejam donas de seus corpos para não sermos mais fantoches nas mãos dos homens.

(Imagem: reprodução)

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