Entre risos e lágrimas / Obvious Child (2014), de Gillian Robespierre
O que faltou para “Where are my children?” foi o protagonismo feminino. “Obvious Child”, ou “Entre risos e lágrimas”, que foi o título dado ao filme ao entrar no catálogo da Netflix, já começa com a comediante Donna (Jenny Slate) contando uma piada sobre vaginas em uma apresentação de stand-up — e a partir daí só melhora.
Donna termina com o namorado, que a traiu com uma amiga, e logo descobre que perderá o emprego porque a livraria em que trabalha vai fechar. Em uma noite, ela conhece Max (Jake Lacy), um cara bem legal, e transa com ele. Algumas semanas depois, Donna descobre que está grávida.
Desde a primeira consulta com uma médica, Donna diz que quer um aborto. E ela o faz, o que é algo positivo — há muitos exemplos de narrativas em que uma mulher desiste de um aborto na última hora. Nestas narrativas, a mensagem que está sendo passada é de que as mulheres mudam de ideia facilmente, e por isso não podem tomar decisões importantes.
Mas Donna precisa esperar duas semanas para fazer o procedimento na clínica. E, durante este tempo, ela continua se encontrando com Max, que é de fato um cara bem legal. Isso diz muito: uma personagem grávida não de um estuprador, de um abusador, mas de um homem de quem ela até gosta — mas que sabe que não está na hora de ser mãe, e não é prudente começar uma vida a dois daquele jeito. Isso vai de encontro com o dado de uma pesquisa: muitas mulheres casadas optam pelo aborto. São mulheres grávidas de seus maridos, de homens que elas amam, mas que não podem ou não querem ter mais um filho naquele momento.
A amiga e colega de quarto de Donna, Nellie (Gabby Hoffmann) fez um aborto quando era adolescente. Ela conta como foi, sem chocar ou fazer drama, e diz que não se arrepende. Não há julgamento por parte de Donna, e Nellie também não interfere na decisão da amiga. Não há conselhos dados por suposta boa vontade nem falsos moralismos.
Donna tem medo de contar o que está acontecendo para a mãe, que é uma brilhante professora universitária. Quando Donna finalmente conta, a surpresa: sua mãe também havia feito um aborto — e foi clandestino, feito em uma mesa de uma cozinha de um apartamento estranho, quando o aborto era proibido nos EUA, antes de 1973.
O que podemos aprender com esta narrativa é que nunca podemos adivinhar quem já fez um aborto. E também não podemos julgar. Estudos nos Estados Unidos apontam que uma a cada três mulheres já interrompeu uma gravidez. No Brasil, a estimativa é que uma a cada cinco mulheres com mais de quarenta anos tenha feito aborto — e isso em um país em que o procedimento é permitido em apenas três casos.
“Entre risos e lágrimas” é um filme realista? Provavelmente sim. Filme algum seria capaz de tratar universalmente do aborto, representando a experiência de todas as mulheres que já fizeram aborto.
“Entre risos e lágrimas”é um filme que normaliza o aborto. Mulheres que querem abortar abortam, isso é um fato. Em um momento em que coisas tão horríveis quanto racismo, machismo e homofobia estão sendo normalizadas, “Entre risos e lágrimas” é um exemplo do que realmente merece ser normalizado. Vale lembrar que o filme não está sozinho como bom exemplo: a série “Jane the Virgin” também trata o aborto como algo normal.
Um filme feminista e verdadeiramente representativo não é feito apenas com uma mulher na direção. É feito com mulheres escrevendo o roteiro, dirigindo, editando, produzindo e atuando. O cinema como negócio e como arte foi erguido por mulheres — e felizmente filmes como “Entre risos e lágrimas” estão voltando a estas origens que não devem ser esquecidas.
Em “Where are my children?” o homem faz a pergunta derradeira à mulher: “onde estão meus filhos?” — como se o embrião ou feto abortado fosse sua propriedade. Em “Entre risos e lágrimas”, temos uma representação bem mais positiva: Donna, Nellie e a mãe de Donna são donas de seus próprios corpos — e de seus destinos. Ao pai de Donna, resta criar fantoches. E que seja assim daqui pra frente: que as mulheres sejam donas de seus corpos para não sermos mais fantoches nas mãos dos homens.