Essa tal de sororidade na novela “Vale Tudo”

Jess
Cine Suffragette
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7 min readMay 3, 2017

Em 1989 estreava na televisão brasileira aquela que seria uma das maiores obras da teledramaturgia nacional, conhecida até mesmo por aqueles que nunca a assistiram: Vale Tudo. O assassinato de Odete Roitman (Beatriz Segall), a vilã da história, parou o Brasil na época em que a novela foi exibida. Todos queriam saber quem havia matado a grande empresária, dona de uma empresa de aviões, a TCA.

No entanto, a morte de Odete é muito pouco perto do que a história muito bem amarrada e escrita por Gilberto Braga nos apresenta. Vale Tudo mostra que até os mocinhos são corrompidos pelo dinheiro e se valem dele para realizar aquilo que desejam. Aqui não temos maniqueísmos, a heroína da trama, Raquel Acioli (Regina Duarte), precisa trapacear para impedir as maldades de Odete, por exemplo.

Como é de praxe em novelas, sempre chega a hora de o vilão se dar mal. É o que acontece a Maria de Fátima (Glória Pires), que utilizou todas as artimanhas possíveis para se casar com um homem rico, Afonso Roitman (Cássio Gabus Mendes). Entre as armações de Fátima figuram o planejamento da separação da própria mãe do amor de sua vida, Ivan (Antônio Fagundes). Fátima era como um rolo compressor, passando por cima de tudo e todos que pudessem impedi-la de realizar seu sonho. Assistimos atônitos sua entrada no mundo dos ricos, coroada com o casamento com Afonso.

Maria de Fátima (Glória Pires).

Fátima planejou dar o golpe do baú ao lado de César (Carlos Alberto Riccelli), seu amante desde os primeiros capítulos de Vale Tudo. Eles mantêm um relacionamento muito forte, difícil de ser reconhecido por muitos como amor. Afinal, como duas pessoas que fizeram tantas maldades podem se amar? Pois eles se amam — e muito. É o amor por César e a ambição de ter dinheiro que faz com que Fátima aguente o casamento com Afonso.

As coisas saem do controle, e Fátima acaba engravidando. Ela não sabe se o filho é de César ou Afonso, mas como nem o marido ou a família Roitman desconfiam de que ela tem um amante, a paternidade desconhecida de seu rebento não a perturba, até que o inevitável acontece: ela é descoberta. A partir daí começa o calvário de Fátima e a problematização deste texto.

Esperei com muita ansiedade o momento em que Fátima começaria a ser punida pelas maldades que fizera. No entanto, para minha frustração, o que eu vi foi um festival de misoginia disfarçado de castigo. Enquanto Fátima foi privada da liberdade de ir e vir pelos Roitman, que a trancafiam em um quarto até o momento do nascimento de seu filho, César estava sendo mantendo um caso com Odete Roitman e sendo sustentado por ela. O bonitão não estava preocupado com sua parceira de malandragem, muito pelo contrário, ele simplesmente sumiu da vida dela até o parto da criança.

Não é a primeira vez que vilãs são punidas com requintes de misoginia. Um caso bastante recente é o da novela A lei do amor, deste ano. O calvário de Magnólia (Vera Holtz) foi sujeitar-se aos tratamentos pra lá de misóginos de Tião Bezerra (José Mayer), com direito a ajoelhar-se aos seus pés e também ser trancafiada em casa. Ela ficou presa na casa dele durante meses, e a novela tentou forçar o início de um relacionamento entre eles. Magnólia estaria apaixonando-se pelo seu algoz? Sua amiga, Gigi (Mila Moreira), a estimulava a amar o galã, pois, na sua visão, tudo o que ele estava fazendo era em nome de um grande amor do passado. A lei do amor tentou romantizar a Síndrome de Estocolmo, ou seja, quando a vítima apaixona-se pelo algoz. Isso acontece muito em casos de mulheres que foram sequestradas e mantidas em cativeiro durante muitos anos.

À direita Celina (Nathalia Timberg) e sua tão temida irmã, Odete Roitman.

Fátima, como disse anteriormente, sofre toda sorte de humilhações. Ela não tem o direito nem de ficar com as próprias roupas! Em uma das cenas mais tristes da novela, a sogra lhe tira as roupas da mão e informa que agora ela terá de se vestir com as peças que sobraram da época em que ela não era casada com Afonso. Todos os personagens não perdem a oportunidade de cuspir em seu rosto. Por outro lado, em momento algum, César é responsabilizado pelos atos, já que ele era cúmplice de Fátima. Odete, ao saber que o amante se relacionava com Fátima, exige que ele pare de vê-la. E é só. Ela não parece incomodada com as maldades que ele ajudou a arquitetar ao lado de Fátima. Como sempre, a sociedade não consegue punir de verdade os homens por seus atos.

Contudo, a derrocada de Fátima aflora um dos sentimentos mais discutidos dentro do feminismo: a sororidade. Afinal, o que sororidade? Segundo esta definição, trata-se da união e aliança entre as mulheres, com o objetivo de combater o patriarcado e a ideia de que mulheres são inimigas uma das outras. Porém, na prática, esse conceito é muito mais delicado, pois muitas vezes é confundido com simpatia. Simpatia está no campo dos sentimentos; sororidade não. Isso porque a sororidade é um sentimento de empatia, de se colocar no lugar de outra e solidarizar-se com o que ela passa. Não tem a ver com afetividade.

Vale Tudo traz um exemplo bastante didático da prática da sororidade — e de como ela é difícil, pois não é tão fácil assim separar sentimentos pessoais e reconhecer o sofrimento de outra mulher. Neste caso específico, a sororidade vem de Celina (Nathalia Timberg), a tia de Afonso. Fátima e Celina se estranharam em diversos momentos da novela, inclusive em uma das vezes, uma delas recebeu um tapa no rosto da outra. Fátima chantageou Celina, que se vingou e assim a novela seguiu seu rumo.

Quando a queda de Fátima começa, você espera que Celina junte-se ao clã dos Roitman para cuspir no rosto dela e tornar a vida dela um inferno. Não é o que acontece, muito pelo contrário: Celina é uma das únicas pessoas que defende Fátima e se preocupa com seu futuro. Isso porque, caso o filho não seja de Afonso, ela será expulsa de casa, sem direito a nenhum tostão. Fátima não pode recorrer à mãe, Raquel, uma vez que elas brigaram e não se falam mais. Celina, apesar de tudo o que passara com Fátima, defende a ideia de que a garota não pode ficar desamparada, uma vez que César desapareceu da face da Terra. É claro que ela precisa pagar sozinha pelos crimes, porque nem aqui o homem é lembrado de seus atos.

César Ribeiro (Carlos Alberto Ricelli).

Mesmo depois de ter sido proibida pelo sobrinho de falar com Fátima, Celina ainda oferece dinheiro para não deixá-la desamparada. Não é que de repente ela adore Fátima. É uma questão de empatia, que não é vista com bons olhos pelos outros personagens, inclusive por Raquel.

A sororidade é uma faca de dois gumes, pois muitas vezes é por trás dela que se esconde aquilo com o qual não gostamos nenhum pouco de nos deparar: o fato de que mulheres podem oprimir mulheres. Não é só ser designada mulher que está em jogo aqui, junto a isso somam-se opressões de classe, orientação sexual e raça. Mais uma vez, o caso Celina é uma boa ferramenta para entender como não podemos banalizar a sororidade, ao nos esquecermos das opressões estruturais nas quais a sociedade é alicerçada.

Em outra ocasião da novela, a empregada de Celina, Marina (Ana Lúcia Monteiro), foi acusada de roubo. Ela não havia feito nada, mas a culpa recaiu em seus ombros, afinal de contas quem mais poderia roubado uma joia senão a empregada? Marina vai parar na delegacia e quase é espancada — quando imaginaríamos que uma novela de 1989 mostraria a violência policial contra pessoas negras de maneira tão explícita? Isso só não acontece porque Celina chega e a salva no último momento, contando que a verdadeira autora da confusão era Fátima.

É no mínimo inquietante assistir Celina, a salvadora branca, livrando a pele de sua empregada. Você se sente incomodado com a postura adotada pela personagem, ainda que suas intenções sejam as melhores. No fim das contas, o que acontece é uma opressão de classe e raça, em que mais vez uma pessoa negra precisa ser salva pela branca, reforçando tropos utilizados pelo cinema e pela televisão. É interessante perceber a postura extremamente consciente de Marina sobre esse aspecto. Em uma conversa com Eugênio (Sérgio Mamberti), o mórdomo dos Roitman, sobre os patrões, ela diz:

Patrões nunca defendem a gente.

Por mais que Celina tente romper a barreira entre as duas, é impossível. São mulheres de meios completamente diferentes, atravessadas por experiências tão diversas que não se pode exigir sororidade da parte de Marina. Até porque, ainda que Celina seja a madrinha da filha de Marina, ela continua sem ser tratada como uma pessoa na casa dos Roitman.

Ainda que de maneira torta, Vale Tudo nos faz refletir sobre sororidade e privilégios. Além disso, a novela ainda aborda de maneira genial algumas teorias formuladas por Karl Marx em O capital. Mas isso fica para outro texto. Assistam a essa novela é o melhor conselho que posso dar.

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Jess
Cine Suffragette

Tradutora, noveleira e apaixonada por cinema.