“Floradas na Serra”: relembrar Cacilda Becker e Dinah Silveira de Queiroz
A história brasileira é rica da presença de mulheres que deixaram sua marca nas páginas de nossa memória: na literatura, destacamos as figuras de Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles e Hilda Hilst. Entretanto, outro nome merece destaque entre as autoras reverenciadas: Dinah Silveira de Queiroz.
Embora esquecida em nossos dias, Dinah Silveira de Queiroz foi a segunda mulher a receber o título de imortal pela Academia Brasileira de Letras. A escritora paulista foi internacionalmente laureada já em sua estreia com Floradas na Serra. O romance foi levado às telas em 1955 pela Vera Cruz, estrelando a dama do teatro Cacilda Becker em seu segundo — e último — filme.
POESIA E DOR MARCAM ESTREIA DE ESCRITORA PAULISTA
Em décadas de carreira, Dinah Silveira de Queiroz caminhou através dos mais diversos gêneros literários, revelando-se exímia romancista, contista e cronista. Publicado pela primeira vez em 1939 pela Editora José Olympio, Floradas na Serra rendeu-lhe o Prêmio António de Alcântara Machado da Academia Brasileira de Letras. A primeira edição esgotou-se em 20 dias, tornando-se um best-seller da literatura nacional.
Dentre suas principais obras, destaca-se A Muralha (1954). Neste romance, escrito em tom épico em homenagem ao 4º centenário da fundação de São Paulo, a autora narra a bravura de seus antepassados bandeirantes. O livro foi três vezes adaptado para a televisão: a primeira em 1961, para a TV Tupi; a segunda em 1968, para a TV Excelsior; e a terceira em 2000, para a TV Globo.
A geração de 1960 cresceu embalada pelas crônicas feminis de Dinah Silveira de Queiroz lidas durante as manhãs na Rádio Nacional e nas rádios do Ministério da Educação e do Jornal do Comércio. A escritora foi, também, pioneira da ficção científica no Brasil: a influência fantástica de sua prosa é vista, principalmente, nos contos A ficcionista e O céu anterior. Dinah apontava como sua obra maior o livro Margarida La Rocque: a Ilha dos Demônios (1949), no qual descreve “o inferno de uma mulher”. Seus livros foram traduzidos para diversos idiomas, recebendo aclamação da crítica mundial.
Em Floradas na Serra, Dinah apresenta-nos a um grupo de tuberculosos residentes em um sanatório na Serra da Mantiqueira, em um tempo em que a doença era conhecida como a ‘peste branca’. Ali, conhecemos os sonhadores Elza e Flávio; as inocentes Turquinha e Belinha; o admirável Dr. Celso; o ambicioso Bruno e a irreverente Lucília, alter-ego de Dinah — todos protagonistas de sua própria história. A cidade de Campos do Jordão é o cenário desta tragédia campestre que percorre as angústias e paixões de espíritos unidos pela esperança de viver.
Resgatando elementos do romantismo, Dinah envolve-nos em sua prosa revestida de dor e lirismo poético. “O estilo de Dinah é sóbrio, mas tem sempre o que dar em cor e música”, escreveu José Lins do Rego à época da estreia da escritora. “É atraente, tem gosto de fruta e o cheiro das flores da serra.”
“Cobria-se a Serra de flores. Correu primeiro um balbucio de primavera. Seria já a florada? Botões, aqueles pequenos sinais? No meio dos bosques escondidos entre os montes, o amarelo e o vermelho salpicavam, abriam no verde sorridente espanto. Em lugares mais resguardados, mais favorecidos, em breve surgia a neve florida cobrindo as pereiras e transformando, enriquecendo a paisagem. E logo também floriam os pessegueiros. Junto das favelas, nos parques dos sanatórios, rodeando os bangalôs, à beira das águas mansas, a florada em rosa e branco apontou finalmente, luminosa, irreal.
Perto do pequeno lago em que se debruçavam as pereiras alvas, encantadas, o pintor armou o cavalete. Tocados de primavera, os galhos roçavam a água que reproduzia a fila das árvores. Amarrada à margem a pequena canoa envernizada, vazia, estava juncada de flores que o vento carregara.” [1]
O IDÍLIO DE CACILDA BECKER
Em 1955, a Vera Cruz lançou Floradas na Serra, baseado no romance de Dinah Silveira de Queiroz, com direção do italiano Luciano Salce. Transpondo para as telas o lirismo da tragédia literária, a obra tornou-se um marco da cinematografia brasileira.
Em comparação à riqueza do romance, o enredo da obra cinematográfica é mesquinho: enquanto, no original, a autora percorre os tormentos das inúmeras personagens, erigindo suas individualidades ao caráter de universalidade, o filme de Salce lança luz ao romance entre Lucília e Bruno — personalidades marcantes da obra de Dinah –, deixando os demais à condição de coadjuvantes e secundários.
Assim, vemos os créditos iniciais correrem através das paisagens idílicas de Campos do Jordão. Em seguida, a cena é dominada pela figura esbelta de Lucília (Cacilda Becker), uma mulher rica que sai àquelas paragens serranas em busca de paz e descanso, ideia logo arruinada pela descoberta da tuberculose, que a obriga a internar-se em um sanatório das redondezas. Lá conhece o aspirante a escritor Bruno (Jardel Filho), um homem marcado pela fraqueza “da doença e da pobreza”. Apaixonam-se e decidem viver juntos — ele entregue aos cuidados da pálida donzela, e ela feliz por amá-lo. Porém o sentimento é posto à prova quando Bruno, gradativamente, conquista a cura e a ambicionada posição social de destaque no mundo dos sadios, e Lucília aprofunda-se no abismo destinado aos corpos avariados.
Floradas na Serra marca o fim da primeira fase da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, que, à época, encontrava-se em falência — fato surpreendente, pois o rigor técnico de direção, narrativa, fotografia e movimento de câmera torna Floradas… uma produção digna dos clássicos hollywoodianos dos anos 50. As filmagens foram realizadas, em sua maior parte, na cidade de Campos do Jordão, porém, devido à ausência de recursos financeiros, tiveram de ser interrompidas por um longo período e foram finalizadas, mais tarde, nos estúdios da Vera Cruz em São Bernardo do Campo.
O elenco coadjuvante é composto por outros nomes de destaque na arte brasileira, como a modelo Ilka Soares, o galã Miro Cerni, a russa Lola Brah, e o adorável John Herbert em seu início de carreira. “Não poderia ter sido melhor meu começo no cinema”, contou Herbert em depoimento concedido à Neusa Barbosa para sua biografia John Herbert: Um Gentleman no Palco e na Vida. “Nós ficamos dois meses filmando em Campos do Jordão. Na época, como eu estava começando, ela [Cacilda Becker] me intimidava um pouco. A Cacilda era excelente, uma grande dama do teatro. Depois, ficamos muito amigos, uma amizade que durou até o fim da vida dela, em 1969.” [2]
Floradas na Serra possui importância significativa por ser a única grande participação de Cacilda Becker no cinema. A atriz atuou somente no drama romântico Luz dos Meus Olhos em 1947, e contou que, após Floradas…, não recebeu mais nenhum convite para fazer filmes: “Essa é uma das minhas grandes frustrações. Aquela economia de interpretação me agrada muito porque, tendo tão poucos recursos vocais, o cinema seria uma abertura para minha criação artística me pedindo muito menos esforço físico. O trabalho teatral me pede um esforço físico muito grande. Eu padeço fisicamente, eu me sinto uma acróbata no teatro.” [3]
Sua beleza refinada, de traços alongados, é contrastada à figura forte de Jardel Filho, que encarna o amante sofredor e o homem ambicioso. Floradas na Serra foi um dos primeiros sucessos do galã de olhos azuis, que incursionaria por diferentes gêneros e movimentos cinematográficos, sendo mais lembrado por sua atuação magistral na obra-prima do Cinema Novo, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha.
As poucas participações de Cacilda Becker no cinema e na televisão são fato a lamentar-se, visto que possuímos poucos registros do talento que consagrou-a como a maior atriz brasileira de todos os tempos — talento que enriqueceu os palcos, e que certamente enriqueceria as telas. Como Lucília em Floradas…, Cacilda sucumbiu à dor da doença, partindo cedo, aos 48 anos.
Infelizmente, a obra cinematográfica sobreviveu aos nossos dias com áudio mal restaurado. Entretanto, torna-se digna de apreciação, especialmente, pela presença fantasmagórica e arrebatadora de Cacilda Becker, a andrógena e misteriosa dama dos palcos brasileiros, de quem pouco nos restou além daquilo que foi dito e escrito a seu respeito — e, pode-se dizer, é por ela que o filme vale. Da mesma forma, a obra literária será para sempre encantadora em sua singularidade como registro da alma humana.
Cacilda Becker e Dinah Silveira de Queiroz são, como os grandes artistas, legadas à eternidade, descobertas e redescobertas ao longo das gerações e resguardadas no perpétuo fascínio de sua arte.
Referências:
[1] QUEIROZ, Dinah Silveira de. Floradas na Serra. Livraria José Olympio Editora S.A. 20ª edição — Rio de Janeiro, 1981
[2] BARBOSA, Neusa. John Herbert: Um Gentleman no Palco e na Vida. Coleção Aplauso — Imprensa Oficial — São Paulo, 2004
[3] Depoimento de Cacilda Becker que consta do programa Persona em Foco exibido na TV Cultura em 26 de julho de 2016
Foto Capa: Reprodução
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