Florbela Espanca: bela, endiabrada e esquecida
Este é um guest post escrito por Helena Santos.*
Eu consigo nomear aquilo que Florbela queria: ela queria tudo. E, tal como a esmagadora maioria das pessoas que almejam com essa voracidade, a poetisa morreu triste, completamente à míngua. Quando andava na Faculdade, comecei a abrir mão dos dados biográficos. O que interessa, acima de tudo, é perscrutar o coração, submetendo-o a uma análise tão rigorosa quanto possível. Enquanto cidadã portuguesa, nascida e criada numa cidade tediosa, habitada por seres pouco iluminados, posso providenciar-vos informações surpreendentes. Eu estive lá. Durante a minha adolescência, desloquei-me a Vila Viçosa inúmeras vezes. Agi como qualquer jovem, tomada pelo impulso: chorei aos pés da sua sepultura, murmurei coisas incompreensíveis, levei-lhe braçadas de flores. Porque a nossa forma de olhar o mundo era (e continua a ser) a mesma. Nesse sentido, os nossos passos nunca divergiram. Bela nasceu a 8 de Dezembro de 1894, numa casa que os seus patrícios resolveram demolir, sem que isso lhes causasse grande mossa. Vila Viçosa não era, sequer, uma cidade (e ainda não o é, nos dias de hoje). Como enquadrar (ou, se preferimos, padronizar) uma mulher que transbordava? Como é que se tornou possível inseri-la num ambiente reaccionário, de gente tacanha e carrancuda, sem o mínimo de instrução? Atendendo às circunstâncias, Bela foi obrigada a mudar-se uma boa dezenas de vezes, estabelecendo-se no Norte e no Sul do país. Aluna mediana, por não se ralar muito com convenções, matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Foram admitidas somente catorze mulheres, a despeito do número total de alunos (trezentos e sessenta e um, mais concretamente). Obstinada, rebelde e (talvez) exageradamente orgulhosa, contraiu matrimónio três vezes. Num dos seus versos, clamou a um Deus específico. Aquele que ela queria amar, em detrimento de um ser humano incompleto, carcomido pelas suas próprias falhas. Homens não lhe bastavam. Tinha de ser alguém iluminado, transcendente — Em suma, uma espécie de númeno.
Sofria de insónias severas, segundo consta. Quando assim o é, a pessoa vê-se mergulhada no caos (ou, em última análise, num estado de profunda contemplação, onde absolutamente nada faz sentido). Cai-se, tropeça-se para dentro da própria alma. Oh, e as noites demoram a passar, como se cada minuto nos custasse a vida. Existem sempre os químicos, que o Senhor os bendiga! Na véspera do seu aniversário, a escassas horas de celebrar trinta e seis anos de vida, Florbela decidiu morrer. Muniu-se de dois frascos de «Veronal», um soporífero extremamente vigoroso, e tomou-os com leite, no quarto de hóspedes (não sem antes informar Teresa, a sua empregada, de que queria dormir até lhe apetecer, sem que qualquer coisa a pudesse apoquentar). Florbela pôde partir, finar-se, sucumbir. Levou consigo o sonho de todos aqueles que «amam perdidamente». Tinha por hábito dizer que a sua história era «banal», como «toda a história dos tristes». Antes de qualquer outra coisa, a pessoa nasce. Depois, pode eventualmente espantar-se. É precisamente aí, nesse ponto sem retorno, que começam as cefaleias, as insónias e as enormíssimas dores existenciais. A tristeza, essa, é um tipo de aglomerado cinzento que, à medida que o tempo passa, se vai tornando mais familiar, toda debruada a ouro e com requintes excepcionais. Não acaba, não tem fim. Do ponto de vista clínico, poder-se-ia designar por «transtorno persistente». Só que a gente (e Florbela era gente) vai-se empanturrando daquela tristeza. Temo-la toda só para nós, e nunca a chegamos a ver completamente. É impossível pô-la num recipiente, apontando para o seu conteúdo. É igualmente impossível dizer: «Olhem, aqui está a minha dor, tentem afagá-la, prestar-lhe cuidados.» Bela (oh, endiabrada Bela), tu querias tudo. Levaste as mãos vazias (porém, imaculadas, como se de uma estatua se tratasse). A mulher que fumava livremente (e com deleite) nos cafés lisboetas, que usava calças, que escrevia versos e que amavas violetas (nunca as consegui encontrar e reunir num molho, a fim de imprimir um cunho especial naquela que é hoje a tua sepultura). Os meus olhos não são os teus (a despeito daquele mesmo tom garço, que gostavas de enfatizar). A tua alma, sendo somente tua, consegue representar um universal comum: a fúria de viver, o fogo-fátuo, o miraculoso dom de nos sentirmos vivos e a dor de nos sabermos mortais, sem um rumo definido, à espera de algo portentoso que nos traga tudo, preenchendo o nada, o nada, o nada.
*Helena Santos é licenciada em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa.