Fosse/Verdon e o apagamento de mulheres brilhantes

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readJan 4, 2020

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(Imagem: reprodução)

Cinquenta e cinco anos atrás, todos no mundo das artes sabiam quem era Gwen Verdon, e apenas algumas poucas pessoas reconheciam o nome Bob Fosse. Quarenta e cinco anos atrás, todos conheciam Gwen Verdon E Bob Fosse. Hoje, muitas pessoas no mundo das artes — em especial no teatro musical, na dança e no cinema — conhecem Bob Fosse, mas poucos conhecem Gwen Verdon. Fosse é tão famoso que sua última peça, que estreou 12 anos após sua morte, era chamada simplesmente Fosse, e seu nome vem primeiro no título da série da FX “Fosse/Verdon”. Mas não se enganem: foi Gwen Verdon quem lançou a carreira de Bob Fosse.

Uma carreira como a de Bob Fosse não pode ser ignorada — afinal, ele ganhou o Oscar de Melhor Diretor, dois Tonys e três prêmios Emmy no mesmo ano, seu incrível 1973. Mas a carreira de Gwen Verdon é tão impressionante quanto a dele: a ganhadora de quatro prêmios Tony fez nove peças na Broadway, 25 filmes e 25 programas de televisão. Trabalhando como dançarina desde jovem, ela alcançou sucesso nas décadas de 1950 e 60, quando seu trabalho e seu relacionamento com Bob eram ao mesmo tempo simbióticos e tóxicos.

Bob Fosse e Gwen Verdon (Imagem: reprodução)

Gwen enfrentou dificuldades na vida antes e depois de conhecer Bob — por exemplo, seu primeiro casamento, aos 16 anos, aconteceu porque um “amigo da família” com o dobro da idade dela a engravidou. Seu marido se tornou um alcoólatra e Gwen acabou, durante um tempo, escrevendo críticas de teatro para ele, ao mesmo tempo em que cuidava do filho deles. Um de seus primeiros trabalhos após o divórcio foi como assistente de coreografia, um trabalho no qual ela orientou Jane Russell e Marilyn Monroe sobre como elas deveriam se mover no filme “Os Homens Preferem as Louras” (1953). Em meados dos anos 50, ela se tornou uma superestrela da Broadway… e logo veio Bob.

O projeto dos sonhos de Gwen e Bob era Chicago, e demorou 15 anos para que eles conseguissem os direitos da peça e a transformassem em musical. Quando o musical estreou, em 1974, Gwen tinha 50 anos de idade e, após críticas mornas, Bob disse isso a ela, de acordo com a série:

“Gwen: Você nunca achou que eu poderia dar conta do show, né? Bob: Bem? Eu achei que você conseguiria 15 anos atrás, quando começamos a falar sobre isso.” (Imagem: aplicativo TV Time)

Chicago, a peça, já havia sido adaptada em muitas ocasiões. Em 1927, ainda na era muda do cinema, Roxie Hart foi interpretada por Phyllis Haver, então com 28 anos. Em 1942, Ginger Rogers tinha 31 anos e foi a protagonista do filme “Pernas Provocantes”. A mais famosa adaptação para o cinema, a versão de 2002 de Chicago, trouxe uma Renée Zellweger de 32 anos como Roxie. Gwen foi a mais velha Roxie quando estreou o musical — e mesmo assim foi a razão para o sucesso da produção.

“O Show Deve Continuar” (1979) é um filme autobiográfico de Fosse. Muitos diretores fizeram filmes autobiográficos, alguns porque tinham algo interessante a dizer, outros porque tinham egos inflados e gostavam de falar sobre si mesmos — aliás, você é capaz de imaginar como um filme autobiográfico feito por uma mulher seria criticado? Fosse usou passagens de sua vida, sem modificar nada, para fazer o filme, e no processo magoou muitas pessoas, incluindo sua ex-namorada Ann Reinking e sua própria filha. Todo esse processo é contado em “Fosse/Verdon”.

Em uma cena importante do sétimo episódio, quando Bob transforma o solo de Gwen em “Chicago” em um dueto, Gwen não aguenta mais e diz que ela que é responsável pelo sucesso dele, porque ela insistiu para que ele fosse contratado como diretor e coreógrafo quando ele era um “aspirante a Fred Astaire” — são essas as palavras que ela usa. Na cena seguinte vemos que a ideia de Fosse prevaleceu e a música se transformou em um dueto. Em vez de apontar e julgar, “Fosse/Verdon” é uma série que mostra este lado muito humano e os erros dos dois para que nós julguemos as ações de Fosse e Verdon.

(Imagem: reprodução)

Bob Fosse era um mulherengo, e foi babaca em muitas ocasiões. Eu fiquei muito impressionada com a sequência em que Bob e Gwen estão tentando ter um filho, e o médico diz que há algo errado com os espermatozoides de Bob. Mas é Gwen que se submete a uma série de injeções doloridas em um longo tratamento de fertilidade — enquanto Bob não faz nada. Quando eles finalmente descobrem que ela está grávida, em vez de ficar feliz, Bob pergunta quem é o pai — porque ele acha que o filho não pode ser dele.

No final das contas, “Fosse/Verdon” é sobre muitas coisas. É sobre ela, é sobre ele, é sobre eles. É sobre as mulheres que inspiraram o “gênio” Bob Fosse — de sua segunda mulher, Joan McCracken, que teve uma vida trágica e curta, até Ann Reinking, e incluindo Gwen Verdon e Nicole Fosse. Se considerarmos que, nas artes, por milhares de anos as mulheres só podiam ser musas de homens geniais, entenderemos que muitas mulheres sofreram e foram silenciadas por esta condição, e tinham muito mais a oferecer do que inspiração. Gwen Verdon é uma dessas mulheres.

“Fosse/Verdon” foi idealizado para a TV por Steven Levenson, o criador do sucesso da Broadway “Dear Evan Hansen”. Entre os produtores temos Nicole Fosse, única filha de Bob e Gwen, e Lin-Manuel Miranda. Michelle Williams e Sam Rockwell, ambos excelentes em seus papéis, receberam o mesmo salário, fortalecendo assim a luta por salários iguais em Hollywood. Uma série brilhante que talvez seja mais apreciado por aqueles que já têm familiaridade com a Broadway e com o trabalho de Fosse e Verdon, “Fosse/Verdon” traz questões interessantes para nós, destaca as dores e os talentos de uma das melhores dançarinas do século e mostra que todas as musas precisam de transpiração para serem inspiradoras.

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