Sra.Danvers e a homossexualidade como loucura

Jess
Cine Suffragette
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5 min readJun 13, 2017

Uma das coisas que mais ouço de pessoas que não se interessam por cinema antigo é que não existiam personagens queer nos filmes clássicos. Mas você já parou para pensar que eles estiveram sempre lá, porém invisibilizados? Exatamente como na sociedade? Pois é, pois é.

Sra.Danvers (Judith Anderson) em “Rebecca, a mulher inesquecível”.

Após a adoção do Código Hayes, o famoso código de censura de Hollywood, os filmes tiveram de começar a “se comportar”. Insinuações de homossexualidade, sexo e suicídio foram proibidas. A saída encontrada foi o subtexto. Essa época foi de muita criatividade para o cinema, que tinha de dar suas mensagens através de sinais sutis, que passassem despercebidos aos olhos dos censores.

No caso da homossexualidade, os sinais de Hollywood contribuíram muito para a ideia de que ela deveria ser algo a ser combatido — e às vezes motivo de piada. Quando falamos sobre mulheres LGBTs, o buraco é ainda mais embaixo, pois elas foram ainda mais invisibilizadas que os homens LGBTs na era clássica de Hollywood.

As poucas representações que temos de mulheres LGBTs no cinema clássico são atravessadas pelas inúmeras ideias sobre ser mulher que já vem malhadas, como diria Gal Costa, antes de nascermos. Ao sermos designadas mulheres, toda uma vida é preparada para nós: quarto rosa, bonecas, casinhas e fogões. Essa é uma ideia extremamente venenosa do que significa ser mulher.

Quando nos deparamos com mulheres LGBTs no cinema clássico, elas são quase sempre o oposto do ideal de feminilidade. São duras, não usam maquiagem e se vestem sem esmero. É o caso da Senhora Danvers, personagem de Rebecca, a mulher inesquecível, filme de Alfred Hitchcock.

A Sra. Danvers é a governanta da propriedade de Manderley, lugar onde a trama se passa. Ela passa a atormentar a vida da nova esposa de seu patrão, pois no coração dela apenas a falecida esposa, Rebecca, era a senhora digna de Manderley.

A obsessão da Sra.Danvers por Rebecca é o nome dado à homossexualidade. Já que não se podia dar o verdadeiro nome aos bois, a loucura assumiu as rédeas da homossexualidade. Em uma das cenas mais tensas do filme, a Sra. Danvers mostra para a nova patroa a lingerie de Rebecca. Ela oferece a peça de roupa para que a outra tire suas próprias conclusões. Você já viu algo mais macio? — pergunta a Sra.Danvers.

O espectador pode enxergar essa cena como uma demonstração de loucura, pois é o que está na superfície, mas aquilo na tela é apenas a ponta do iceberg. No livro que inspirou a trama, escrito por Daphné Du Maurier, a governanta é claramente apaixonada por Rebecca.

A cena em que a Sra.Danvers convida sua patroa a tocar a lingerie de Rebecca.

A mensagem que Rebecca, a mulher inesquecível nos dá é de que a homossexualidade pertence ao reino da loucura. O incêndio em Manderley, provocado pela governanta, é a coroação dessa ideia. Essa personagem LGBT tem única e exclusivamente a função de ser a pedra no sapato dos mocinhos. O antagonismo da Sra.Danvers é uma forma de retratar a homossexualidade como algo ruim, logo, associada aos vilões.

Em 1978 tivemos a versão brasileira da Sra.Danvers, a personagem Juliana da novela A sucessora. Inspirada no romance de Carolina Nabuco, a trama das seis da tarde levava a homossexualidade aos lares brasileiros fantasiada de obsessão. Aqui temos uma governanta “obcecada” pela falecida patroa, Alice. Ela está disposta a fazer da vida de Marina, a nova esposa do dono da casa, um inferno.

Por durar muito mais que duas horas é possível acompanhar o gaslight furioso que Juliana faz com Marina, bem como a união das peças do quebra-cabeça que revelam a possível homossexualidade de Juliana. A governanta passa horas olhando para o quadro da falecida esposa, com um olhar de devoção e adoração. Além disso, ela gosta de se vestir com as roupas de Alice e incorporar a memória dela.

Juliana (Nathalia Timberg) em “A sucessora”.

A contemplação do quadro de Alice é uma alegoria muito bem construída, intencionalmente ou não, da homossexualidade. O quadro está na sala, a vista de todos, mas ninguém de fato o enxerga. A homossexualidade sempre esteve presente na sociedade, embora os conservadores teimem em dizer que essa é uma moda de agora. As pessoas fazem questão de não enxergar, mas LGBTs resistem e continuam existindo da forma que podem. Juliana continua existindo, mas o fardo é deveras pesado para ela. A única solução para ela é, mais uma vez, a loucura.

Por desviarem daquilo que é esperado delas enquanto mulheres, Juliana e Sra.Danvers são retratadas como mulheres sem beleza e que não gostam de se arrumar. Elas só usam tons escuros ou pasteis. Suas expressões são duras, elas enrugam a testa e não sorriem. A sucessora e Rebecca masculinizam suas personagens na tentativa de nos mostrar que tudo aquilo que elas são — incluindo a homossexualidade delas — é o caminho pelo qual mulheres não podem seguir. Por isso, meu caro Watson, elas são as vilãs.

A maioria das análises de Rebecca, a mulher inesquecível concentra-se no elemento não presente do filme, no caso, a própria mulher no título. Em outras encontramos análises apaixonadas sobre as inspirações góticas de Alfred Hitchcock para compor a atmosfera da trama. No entanto, a Sra.Danvers é sempre esquecida. Isso não acontece por acaso, eu acho. Há todo um movimento de que filmes antigos são intocáveis, de que não se pode analisá-los com os olhos de hoje. Eu não acredito nisso.

Com essa pequena análise da Sra.Danvers, podemos delinear um padrão de mulheres LGBTs em Hollywood, que só seria quebrado dos anos 70 em diante. Depois da Sra.Danvers houve Jo, personagem de Barbara Stanwyck em Pelos bairros do vício, que passou o bastão para Martha de Infâmia e assim por diante. Essas maneiras de mostrar mulheres LGBTs pautaram muitas representações problemáticas que ainda perduram.

Por isso, é sim muito importante olhar para um filme dos anos 40 e pensar em como ele ainda impacta a comunidade LGBT. A Sra.Danvers merece um olhar mais atencioso de nossa parte.

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Jess
Cine Suffragette

Tradutora, noveleira e apaixonada por cinema.