Incompatível com a Vida (2023), de Eliza Capai
Gravidez forçada é tortura. Forçar uma menina, mulher ou outra pessoa com útero a seguir adiante com uma gravidez indesejada é tortura. Isso pode acontecer com uma gestação indesejada desde o começo, mas há casos em que uma gestação desejada se torna indesejada devido a algum diagnóstico fetal. É sobre este último caso que se debruça o documentário vencedor do festival É Tudo Verdade, “Incompatível com a Vida”.
No começo da pandemia, Eliza Capai descobriu-se grávida. Como boa documentarista, registrou tudo, até os medos que a assombravam. Tendo se mudado para Portugal, terra do companheiro, durante a gravidez, foi lá que ela viu seu mundo desabar ao descobrir que o feto tinha uma má-formação incompatível com a vida. Do luto, fez seu documentário.
Elisa filma outros casais e mulheres com o mesmo diagnóstico, momento em que é abordado o luto paterno. Enquanto a mãe se sente inútil, por ter falhado em sua única missão – proteger o ser humano em formação -, o pai também passa por um turbilhão de emoções, também sentindo a falha ao proteger quem ama e de mãos atadas, sem ação perante a morte iminente de um ser amado.
Para muitas mulheres, a interrupção da gravidez então torna-se um desejo. Mas não será fácil realizá-la no Brasil: o único caso de incompatibilidade com a vida que permite a interrupção por vias legais é a anencefalia, ausência do cérebro no feto. Mesmo com laudos e decisões judiciais, mulheres com outros diagnósticos de incompatibilidade com a vida precisam fazer uma Via Crucis por hospitais que seguem declinando cuidado um após o outro, por questões de protocolo ou falta de infraestrutura.
Outro caso em que o aborto é previsto em lei é se a gravidez for resultante de estupro – mas mesmo assim o direito nem sempre é garantido com facilidade. Mais de uma entrevistada, incluindo uma declaradamente evangélica, lembra o caso da menina de 10 anos de idade que, grávida após ser estuprada pelo tio, teve de ir do Espírito Santo até Pernambuco para interromper a gestação, e mesmo assim foi assediada dentro e fora do hospital por pessoas contrárias ao procedimento.
O sistema que despreza o desejo das mulheres é o mesmo sistema que as explora ao máximo. Uma das entrevistadas, cuja filha foi diagnosticada com Síndrome de Edwards, relata como os médicos queriam empurrar para ela a opção de manter a criança, caso sobrevivesse à gestação e ao parto, numa UTI neonatal, que mais tarde se transformaria numa caríssima UTI na casa dela. A entrevistada, declarando que viver presa numa UTI não é viver, escolheu interromper a gravidez.
Eliza e o companheiro se perguntam como conseguiam que pessoas dessem aval para ela gravá-las em momentos de dor e sofrimento. Eliza diz que não aceitaria ser gravada em seu pesar por terceiros. E ela grava tudo: o diagnóstico numa sala de ultrassom, a viagem de despedida, o momento em que sente contrações, já tendo dado início ao processo abortivo em Portugal, onde o aborto é legalizado – e, por isso, onde não morre uma única mulher vítima de aborto clandestino há mais de dez anos.
Nem todas as mulheres entrevistadas escolheram a interrupção da gravidez, e elas são respeitadas pelo documentário. A escolha deveria ser sempre respeitada, mas para isso o poder de escolha precisa existir. Mas os políticos parecem não estar dispostos a dar a escolha nas mãos das mulheres: bastou Rosa Weber, em seus momentos finais como ministra do STF, votar a favor da descriminalização do aborto até 12 semanas de gestação para a extrema-direita ameaçar voltar a pautar no Congresso o Estatuto do Nascituro – que quer proibir todo tipo de aborto.
São em situações-limite como as mostradas no documentário que mulheres que eram completamente contra o aborto são colocadas contra a parede e decidem que precisam ir atrás daquilo que um dia condenaram. A entrevistada evangélica menciona seu avô, que fora pastor, e que apesar disso apoiou a decisão da neta de interromper a gravidez.
Alívio. Vazio. Vontade de ficar sozinha. Ver o relacionamento com o parceiro terminar ou ficar mais forte depois da tormenta. Querer tentar de novo. Ter medo de acontecer de novo. São muitas as sensações que podem passar pela cabeça de quem perdeu um filho após o diagnóstico de doença ou má-formação incompatível com a vida. É uma experiência dilacerante, que não é igual para todas as pessoas, e para a qual deveria haver uma escolha no fim do túnel. Respeitar só a escolha de quem quer levar uma gestação maculada adiante é desprezar e desamparar quem quer outra via para lidar com um desafio tão grande. É escolha que pedimos. É por ela que seguimos lutando.