Just Charlie (2017), de Rebekah Fortune

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
10 min readJun 30, 2021

Tradução da crítica publicada no Letterboxd por Sally Jane Black

(Imagem: reprodução)

Eu vi este filme por acaso. Eu não li a sinopse, e imaginei que estava na lista de filmes que eu poderia gostar porque eu acabei de assistir a duas comédias românticas gays de Natal e esta seria mais uma comédia romântica gay de Natal. Em vez disso, é um drama britânico sério sobre uma criança trans, que vem com um pesado contexto e que me fez chorar apenas por existir, não importando se é um filme bom ou ruim.

Nos últimos anos, a luta pelos direitos dos transexuais na Grã-Bretanha tem sido difícil. A narrativa que prevalece na imprensa é reacionária e transfóbica, aumentada por uma mistura de bobagem patriarcal capitalista típica, algumas famosas TERFs (sigla em inglês para feministas radicais que excluem transexuais), uma dose de distração religiosa e óbvio oportunismo político. É parte do coquetel político vulgar de debates divisivos e intolerantes criados para tirar nossa atenção do desastre climático, colapso econômico, guerra imperialista e, este ano, da pandemia, mas também existe para reforçar valores patriarcais de “normas de gênero como propulsores do lucro”.

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Vemos sinais disso nos Estados Unidos. A deputada democrata Tulsi Gabbard apresentou um projeto sobre transexuais no esporte usando muitos dos velhos e péssimos argumentos sobre “gênero biológico” (quer dizer, “a escola mente sobre gênero”*) e “pense nas crianças!” para tornar a vida das crianças trans um inferno. Os projetos de lei sobre banheiros, as tentativas de impedir que estas crianças tenham acesso a cuidados médicos, o número crescente de assassinatos de pessoas trans (principalmente mulheres trans negras, porque o racismo também está presente) são tudo parte do mundo infernal da política para transexuais neste momento.

*Gênero ou sexo na biologia (use os termos indistintamente) é incrivelmente diverso nos humanos, e fica mais diverso ainda se olharmos para outras espécies. Referir-se à biologia quando falamos sobre gênero e citar dois gêneros é como se referir à astronomia quando falamos sobre estrelas e citar apenas duas estrelas. Só mostra que você não sabe do que está falando.

Na Grã-Bretanha, a luta pelos direitos dos transexuais sofreu um grande abalo no final de 2020 quando uma lei foi aprovada proibindo não apenas que menores de idade tenham acesso a bloqueadores de puberdade, mas também impedindo que aqueles que já receberam a prescrição tomem estes bloqueadores. Este é um ataque direto. Um ato de violência em massa. Isso literalmente matará pessoas. Isso matará crianças. Não apenas o índice de suicídio irá aumentar, mas os níveis de violência doméstica, bullying, outros problemas de saúde associados a estresse e trauma, comportamento desleixado, uso de drogas e álcool, crimes de ódio, e mais aumentarão porque essa lei manda uma mensagem clara: o governo não vai proteger crianças trans. Isso até levará adultos trans de volta ao armário. É uma lei de crueldade.

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Sobre o filme. Ele tem muitos problemas. É basicamente um comercial sutil sobre a organização Mermaids*. Tem praticamente todos os clichês da experiência trans que você pode imaginar para uma criança trans. Quem sabe se o ator principal é trans ou não (tudo o que eu li citava-o como sendo cisgênero), então este é mais um problema (embora eu deva dizer que ele é um bom ator, e eu acho que ele merece muito crédito pela performance). É um filme muito pesado, muito sentimental, muito direto. E eu não quero exagerar ao descrevê-lo.

*Nota da tradução: Mermaids é uma organização britânica de apoio a crianças e adolescentes trans e não-binários.

Contextualmente, é um soco no estômago. Talvez eu que esteja sendo sentimental agora, mas o filme parece uma boa tentativa, como se eles estivessem criando um argumento a favor de crianças trans num momento em que, num passado recente, elas estavam sob ataque constante. Muito do que aparece na narrativa é um reflexo da realidade, mesmo quando não é executado com a nuance que merece. Este é um filme que está gritando para o público cis: “trate bem as crianças trans, elas não são essas coisas horríveis que dizem, elas são boas crianças, merecem viver vidas bacanas, elas já lidam com muitos problemas, por isso não seja mais um”. O que… não é algo ruim de se ver. Não é a pior mensagem que temos por aí. Merece ser uma mensagem transmitida sem tanto exagero como no filme, mas mesmo assim.

Bem. Poderíamos ficar sem o incidente das tesouras. Foi chocante e… bem, não me senti representada no sentido de ter uma experiência semelhante, mas me senti representada porque com certeza tive aqueles pensamentos (e quem não teve?). Mas foi desnecessário e pareceu o maior exemplo de exploração apelativa do filme. Pareceu sensacionalismo. É como uma historia sobre transexuais publicada em tabloides. Ações drásticas são consequências de como somos tratados, como nos é negado tudo de que precisamos, mas representar isso requere mais sensibilidade do que a edição discreta conseguiu. É muito doloroso ter um corpo; há maneiras melhores de lidar com essa questão.

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O que diferencia este filme de outros como “A Garota Dinamarquesa” ou “Normal” é que este filme faz um esforço para acertar. Nem sempre tem êxito, mas está tentando. Isso significa muito, de verdade. É uma competição baixa, mas este é o mundo em que vivemos. Você vê pequenas coisas, como a menina trans se defendendo, falando sobre sua identidade sem ser patética. Pequenas coisas, como ser visto como um ser humano. Você vê alguma compaixão pela protagonista trans que não é infantilizadora. Você vê que a violência contra ela é mostrada como repugnante. Não passamos muito tempo tentando entender as pessoas que a rejeitam; passamos tempo vendo-a através do olhar das pessoas que a apoiam. Passamos tempo com ela, que é mais do que tantos filmes permitem.

Então, sim, é sofrível vê-la com os meninos na festa ou ver a família dela navegando no site das Mermaids, e é inevitável que alguns aspectos da trama possam parecer entediantes ou doutrinadores. Mas no fundo há momentos que fazem o filme valer a pena. Charlie decidindo conversar com a avó ou com o pai diretamente (literalmente se defendendo, sendo ela mesma, lutando por si mesma e pela vida que ela deseja) foi o que me fez chorar. Pensar que uma criança precisa fazer isso por si mesma reflete a crueldade deste mundo com relação às pessoas trans. Ver uma pessoa trans que não é reduzida a algo sem poder numa situação de partir o coração é… notável. Precisar de mais de uma conversa para fazer as pessoas entenderem é uma dose de realismo que é apreciada aqui, sim, mas é mais importante o fato de ela ser alguém que não é passiva em sua própria história. Isso faz com que seja uma história sobre ela, não sobre pessoas cis reagindo a ela. Essa caracterização faz com que seja incrível o momento em que ela insiste com o médico, dizendo que ela sabe o que ela sente. E esta é a mensagem certa a passar: crianças trans não estão confusas. Elas sabem quem são. Se elas são capazes de se levantar e nos dizer quem são, nós devemos acreditar nelas, confiar nelas e deixar que elas tomem suas próprias decisões. Mostrar isso é não apenas dizer isso, mesmo que seja bruscamente, faz valer a pena cada momento de atuação ruim, cada cena clichê (mesmo que verdadeira), cada falha.

(Imagem: reprodução)

Isso não quer dizer, contudo, que eles ignoram os aliados cisgêneros. Eu detesto a ideia de “aliados”, mas vamos usar esse termo assim mesmo. De qualquer forma, eles conseguem mostrar pessoas cisgênero apoiando Charlie sem infantilizá-la. Eu cito a cena em que a mãe dela a leva ao médico, ou a cena em que a irmã dela discute com um amigo, ou a cena em que Charlie bate num amigo e grita “SEE IT’S FUCKING POSSIBLE.” Não estou dizendo que acertam todos os detalhes, mas ao menos conseguem mostrar esse tipo de apoio de maneira a mostrar como ele é necessário (é claro que um menor de idade precisa de apoio quando inserido no sistema médico / é claro que precisamos de pessoas cis para falarem por nós quando não estamos presentes / é claro que você deveria nos defender quando somos atacados na sua frente – e nós podemos lutar por nós mesmos, também, e nada disso contradiz o apoio cis nem o torna desnecessário). Sim, eu gostaria que o filme condenasse mais os erros médicos mostrados. Sim, eu gostaria que houvesse menos cenas de violência contra crianças trans. Sim, há uma dúzia de detalhes que poderiam ter sido diferentes com um viés mais libertador. Mas foi a atmosfera política que influenciou muito tudo isso. Esta não é uma história trans; esta é uma resposta. Mas uma resposta necessária (mesmo que infelizmente inadequada).

Parte do que faz este filme parecer intencionalmente feito como um argumento no grande debate trans da Inglaterra e não apenas uma história trans é que ele se encaixa em todos os grandes debates: esportes, banheiros, violência, bloqueadores de puberdade e outros estão todos presentes ali. É isso que faz o filme parecer querer tratar de coisa demais de uma vez só. Fazer de Charlie uma grande jogadora de futebol permite que os temas sejam tratados com mais naturalidade, mas há um momento depois de 150 minutos de projeção (isso é uma ironia, não precisam se perguntar se há uma versão estendida) em que você para e diz “ok, vamos logo com isso”.

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A parte ruim disso é que o filme acaba deixando a questão do futebol de lado e focando na questão trans. Se você me promete um filme trans de esportes, eu vou querer ver um filme trans de esportes. Há poucas cenas de jogo, um pouco de drama nos vestiários, mas o que as pessoas pouco representadas querem ver é gente como elas nas histórias comuns. Conte uma história trans de esportes. Não conte uma história cis de esportes com uma pessoa trans no meio (o que felizmente eles não fizeram). Não conte uma história trans com elementos de esportes. Conte uma história trans de esportes. Isso pode ser feito. Há uma história muito, muito poderosa a ser contada aí. Todos nós amamos histórias de azarões; é essa a história que está ali. Por que não se jogar e fazer algo realmente incrível?

(Uma história trans de esportes real, aliás, seria apenas zombar dos medos das TERF e mostrar uma mulher trans ganhando medalha de ouro em todos os esportes olímpicos. Um drama esportivo sério, mas com o pênis dela aparecendo em todas as cenas*)

*Cineastas, não façam isso.

(Imagem: reprodução)

Muita coisa acontece neste filme e não posso comentar tudo, mas outro elemento narrativo que merece ser mencionado é o pai de Charlie. Não posso fingir que meus sentimentos sobre ele são complicados. Parte de mim quer que a história o condene muito, muito mais, especialmente depois de sua reação inicial violenta. Há uma constante entre pais de pessoas trans com relação a ter um luto pelo filho que perderam, e há toda uma simpatia que eles inspiram por causa disso. Este filme… brinca com essa ideia. Os personagens nunca aprovam esta ideia, mas a maneira como o filme trata do velho e transfóbico pai definitivamente alimenta mais a ideia do que deveria. “Ele está sofrendo” ou coisa parecida. É uma desculpa que não cola, e é muito satisfatório quando a mãe, apoiadora, o critica (“você não precisa ser parte desta família se você não ama sua filha” é o melhor “foda-se” que eu ouvi em muito tempo). Mas o filme dá muito espaço para o pai. Ele nos deixa olhando para a cara dele. Ele nos deixa ver sua dor. Não lhe oferece nenhuma simpatia através dos personagens, mas através das lentes da câmera. E a intenção aqui é óbvia: eles querem que os pais que estão passando pela mesma situação sigam este pai para que sejam como ele no final, encontrando redenção. E ao colocar o pai como este antagonista que precisa ser conquistado e não vencido, eles fazem com que Charlie defenda a si mesma. Eles permitem que o público não se sinta rejeitado, e isso também é importante.

O filme é, no final das contas, uma resposta, e nesta resposta eles precisam conquistar os transfóbicos, não segregá-los. Mas ao fazer isso, parece que apagam a… bem, vamos ser diretos: ignora o fato de que esse tipo de resposta pode ser fatal. O filme tem uma narrativa de privilégios. Presume um público privilegiado, e presume que as pessoas trans que estão retratando têm alguns privilégios. O filme tem consciência disso (eles mais ou menos chamam os personagens de classe média no começo do filme, mas usando uma definição liberal norte-americana de classe média), mas em nenhum momento menciona as narrativas alternativas que muitos vivem, aqueles que têm muito pesando contra si e para quem se assumir pode ser uma sentença de morte, aqueles que têm que lutar não só contra a transfobia, mas também contra o racismo (e outros preconceitos), aqueles que não sabem se definir, aqueles cujos pais simplesmente não os amam, aqueles que não têm uma mãe ou irmã para procurar por “disforia de gênero” no Google, aqueles que já sofreram tanto que consideram impossível apenas dizer quem são… E num filme que tenta tanto ter tudo dentro, a ausência destas narrativas diz muito.

(Imagem: reprodução)

Então sim, é bacana ver o pai ter uma redenção ao final. É o final inevitável que nos foi prometido quando vimos a pequena estrela de futebol no início. E, sim, é provavelmente um pouco eficaz em conquistar algumas pessoas. Mas o filme delimita o público que pode ou vai ouvir este argumento, e é um argumento que deveria ser ouvido por todos.

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