Mães de Verdade (2020), de Naomi Kawase

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readJan 28, 2022

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O filme começa com o clichê sonoro da maternidade: uma mulher respirando de soquinhos, com dificuldade, e depois o choro de um bebê. Aos sons se seguem imagens da imensidão do mar e do céu, singrado por uma ave. Já se falou muito sobre maternidade no cinema, muitas vezes com clichês como o que abre o filme, mas “Mães de Verdade”, da diretora Naomi Kawase, segue a narrativa escapando das armadilhas melodramáticas fáceis. Ainda bem.

Kiyokazu (Arata Iura) e Satoko (Hiromi Nagasaku) são país de Asato (Reo Sato), de seis anos. Um dia, Kiyokazu, a mãe, recebe uma ligação da escola do menino: ele teria empurrado um coleguinha, que caiu e se machucou. É a primeira perturbação na vida familiar feliz.

Em um flashback, são mostradas as dificuldades para chegarem onde estão. Depois de tentarem engravidar sem sucesso, o casal descobre que o marido praticamente não tem esperma no sêmen. Ele reluta um pouco, mas aceita retirar cirurgicamente os espermatozoides para uma inseminação — ao menos ele não culpa a mulher pela infertilidade nem a faz passar por tratamentos dolorosos. Quando eles já haviam desistido, veem um programa na televisão sobre uma agência de adoção, o que reacende suas esperanças. Na reunião na agência, uma exigência se destaca: para o casal poder adotar, um dos pais deve parar de trabalhar e ficar em casa com a criança o tempo todo, “para o bem da criança”.

No tempo presente, uma nova ligação para Kiyokazu: quem está do outro lado da linha é Hikari Katakura (Aju Makita), a mãe biológica de Asato, que quer ele de volta, mesmo após abrir mão de seu direito na agência.

Novo flashback: Hikari tinha 14 anos quando engravidou do namorado. Tendo descoberto a gravidez tarde demais para fazer um aborto de acordo com a lei japonesa, seus pais decidem que ela sairá da escola — eles dirão que ela está internada –, será acolhida pela agência de adoção até o parto e dará o bebê para adoção. Ela não tem escolha.

Na agência, ela conhece uma nova realidade: sua colega de quarto é uma garota de programa que engravidou de algum cliente. Outra menina ouviu elogios de um recrutador e, em suas palavras, foi “trabalhar na noite”. Hikari canta a canção que seu namorado cantava, prometendo ao bebê “vou te encontrar, vou te alcançar onde você estiver”.

Tempos depois, Hikari volta para trabalhar na agência de adoção. Asami (Myioki Asada), a dona da agência, diz que não podia ter filhos, que era enfermeira e, por conhecer muitas mães com dificuldades, resolveu dar uma vida melhor para os bebês. E para as mães? Elas não merecem uma oportunidade de melhorar de vida? Sim, foi-lhes retirado o fardo de um filho que não podiam criar, mas não é suficiente resolver esse problema e jogar a mulher de volta, completamente modificada, para sua velha realidade. Não são só os recém-nascidos que precisam de acolhimento.

A natureza é uma constante no filme. O mar de Hiroshima parece proteger as mulheres da agência, diz Asami. Há alguma interpretação mais profunda? É possível interpretar, de maneira piegas e equivocada, que a mensagem é que ser mãe está na natureza feminina. É mais provável que o filme seja sobre a natureza feminina e não sobre a maternidade, uma vez que a tradução literal do título é “a manhã está chegando” — nada a ver com mães de verdade ou de mentira. Aliás, o que seria uma mãe de mentira?

O cinema sempre falou muito de maternidade, mas em geral pelas lentes de diretores homens. Desde a providencial tomada da chegada do trem à estação, com a mãe retirando um a um os vários filhos do comboio no filme dos irmãos Lumière, — cena que já foi chamada de “a mais terna do século XIX” — foi o ponto de vista masculino sobre a maternidade que prevaleceu.

Mas ainda bem que houve pelo caminho algumas mulheres que também filmaram o que é ser mãe: de Alice Guy e Agnès Varda — com “A Madame com Desejos” e “A Ópera-Mouffe” — até Noémie Saglio — “Tal Mãe, Tal Filha” — e versões pouco usuais sobre gravidez — como “Prevenge” de Alice Lowe e “Olmo e a Gaivota” de Petra Costa e Léa Glob. E outra história pouco usual recente sobre ser mãe é “Maternal”, de Maura Delpero, sobre uma freira que assume o papel de mãe de uma menina em um abrigo após a mãe biológica desta fugir. Muitas tentativas para uma pergunta que nem Naomi Kawase conseguiu responder: o que faz de uma mulher uma mãe exatamente?

De volta a “Mães de Verdade”: além da natureza, outra constante é o pedido de desculpas: de Asato para o coleguinha e depois de volta, de Hikari, de Kiyozaku. Já disseram que as mulheres pedem desculpas demais, até quando não precisam, e talvez as mães peçam mais desculpas que a média entre as mulheres. O pedido de desculpas é um detalhe interessante, que gera esta reflexão pequena, porém poderosa.

Um casal diz na agência que contaram ao filho que ele tem três mães: a biológica, a adotiva e Asami, que foi a ponte entre as duas. Hikari ouve de uma amiga “você é uma mãe pra mim” ao ajudá-la. De volta ao tema de ser mãe, cuja importância foi amplificada pela tradução do título em português. Será que era realmente a intenção de Kawase de contar uma história sobre maternidade?

Com a palavra, a diretora: “Essa é uma história sobre criar o próprio destino, como, se, depois da chuva, uma luz radiante purificasse o mundo”. Repetindo: o título original do filme é “a manhã está chegando”, ou seja, depois da escuridão vem um momento de claridade purificante. Naomi quis filmar essa claridade purificante, não a maternidade. Não somos nós que vemos feminismo em tudo, que analisamos a condição da mulher em todas as obras de audiovisual: somos, neste caso, condicionados a pensar e repensar a maternidade por causa do título em português.

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