Mães Paralelas (2021), de Pedro Almodóvar

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
6 min readFeb 19, 2022

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ESTA CRÍTICA TEM SPOILERS

Quando queremos ver boas histórias protagonizadas por mulheres no cinema, o melhor lugar para encontrá-las é nos filmes escritos e dirigidos por mulheres. O segundo melhor lugar é nas películas de Pedro Almodóvar. Retratando as mulheres por uma lente realista, beirando o antropológico, Almodóvar está há mais de 30 anos fazendo muito sucesso. Seu filme mais recente, “Mães Paralelas”, é mais uma história de mulheres – e também muito mais que só uma história de mulheres.

A fotógrafa Janis (Penélope Cruz) conhece o antropólogo forense Arturo (Israel Elejalde) em uma sessão de fotos, e mantém contato com ele para tratar de uma questão familiar. A questão é que o bisavô de Janis e outros homens de sua aldeia foram assassinados no começo da Guerra Civil Espanhola e enterrados todos juntos em uma vala comum. As pessoas da aldeia sabem onde está esta vala, e precisam da autorização e ajuda de uma equipe forense para abrir a vala, identificar os restos e enterrá-los devidamente.

A relação de Janis e Arturo passa do estritamente profissional para o pessoal, mesmo ele sendo casado. Assim, por acidente, Janis engravida e eles se separam, com ela aceitando muito bem a gravidez. No dia em que vai dar à luz, Janis conhece a adolescente Ana (Milena Smit), também grávida por acidente, mas infeliz com a situação. Janis e Ana trocam endereços e telefones, ficando amigas.

Ao conhecer sua filha Cecília, Arturo desconfia que não é pai da menina. Janis fica furiosa com ele, mas também se enche de dúvidas. Ela acaba fazendo um teste de DNA e descobre que não é a mãe biológica de Cecília, mas decide seguir a vida assim mesmo. Tempos depois, Janis reencontra Ana e fica sabendo que a filha da jovem, Anita, foi vítima de morte súbita. Angustiada, Janis contrata Ana como babá de Cecília e aos poucos se envolve cada vez mais com a jovem.

Hoje, quando falamos de maternidade, encontramos termos que não eram mencionados há pouco mais de dez anos. Falamos, por exemplo, sobre maternidade real, sobre rede de apoio. As maternidades vividas por Janis e Ana não são idealizadas, embora ambas estejam contentes por serem mães – uma vez que Ana acaba se resignando com todo o acontecido. Ambas contam com uma babá como rede de apoio para criarem suas filhas, mas as passagens destas babás são demasiado curtas. Para fazer jus ao título do filme, teria sido interessante ver mais os paralelos entre as realidades maternas de uma e outra – em especial porque são ambas mães solo.

É interessante também pensar em como o aborto entra – ou não – nas tramas do filme. Arturo chega a insinuar que Janis deveria abortar, mas a palavra nunca é dita. Ela diz apenas “Voy a tenerlo”, se referindo ao bebê. Depois, Ana conta a Janis que engravidou após ser chantageada e forçada a transar com três homens, um deles com seu consentimento, dois sem. Janis diz que Ana foi vítima de estupro e que os responsáveis deveriam ter sido denunciados, mas em momento algum fala que Ana tinha direito a um aborto legal – direito que, na Espanha, é assegurado em qualquer caso até 14 semanas de gestação. Ana foi a única punida por ter sido vítima de estupro: foi enviada pelo pai, envergonhado, para a mãe, com quem não convivia.

Além de Janis e Ana, a terceira mãe neste filme é Teresa (Aitana Sánchez-Gijón), mãe de Ana. Ela conta que não tinha vocação para ser esposa e mãe, e que sempre quis ser atriz. Para obter uma anulação do casamento, praticamente teve de confessar em tribunal que era prostituta, e nesse processo perdeu a guarda da filha. Mesmo assim, seguiu seu sonho e tardiamente se tornou uma atriz de sucesso, fazendo turnês de teatro por toda a Espanha. Teresa é a prova de que existem muitos tipos de mães, inclusive as que não deveriam ter tido filhos.

O estilo e a forma dos filmes de Almodóvar já foi descrito como “melodrama pop”, por seu uso de cores intensas e temas característicos do dramalhão, como dilemas amorosos e, aqui, troca de bebês e posterior morte de uma das crianças. Ao contrário do melodrama clássico, o melodrama almodovariano não tem vilões maquiavélicos maltratando mocinhas virginais e infernizando heróis honrados. Mais próximo do melodrama de Douglas Sirk, Almodóvar tem na sociedade e nas amarras sociais as fontes de sofrimento de suas protagonistas. No seu melodrama, como definiu Ismail Xavier, Almodóvar incorpora:

“deslocamentos de valores operados pelo hedonismo da sociedade de consumo, desestabiliza as normas tradicionais de separação do masculino e feminino, trabalhando as formas de choque entre o arcaico e o moderno que tiveram seu lugar na Espanha com a queda do regime de Franco.”

Paralela às tramas maternas de Janis e Ana corre a trama que diz respeito aos desaparecidos da ditadura franquista, o que faz de “Mães Paralelas” o filme mais político da carreira de Pedro Almodóvar. A Espanha, como nós, tem fantasmas que precisa ainda exorcizar, e como nós também teve políticos que não davam a mínima para essas questões – algo que é inclusive citado em “Mães Paralelas”. O “fazer as pazes” histórico envolve descobrir a verdade – tantas vezes dolorosa – sobre o fim de entes queridos e dar a eles uma despedida digna.

Estima-se que só durante a Guerra Civil Espanhola (1936–1939) os falangistas de Franco tenham assassinados 114 mil espanhóis. Destes, apenas cerca de 19 mil corpos foram exumados. Houve, após a morte de Franco em 1975, um pacto do esquecimento, tal qual a anistia “ampla, geral e irrestrita” do Brasil. Ficou decidido que os crimes cometidos durante o Franquismo seriam simplesmente esquecidos – e as vítimas, deixadas sem resposta e sem justiça. Felizmente, em 2021 a esquerda espanhola introduziu leis para mexer no vespeiro franquista, homenagear vítimas e exumar valas comuns. Por outro lado, o partido de extrema-direita em ascensão, o Vox, tenta recontar a história à sua maneira, louvando o ditador. Igualzinho no Brasil.

Como mencionado acima por Ismail Xavier, Almodóvar começa sua carreira mergulhado nas contradições da Espanha pós-fascismo, num movimento de contracultura chamado de La Movida Madrileña. Em entrevista ao The Guardian, Almodóvar diz que, em seus primeiros filmes, decidiu filmar como se o ditador Francisco Franco nunca tivesse existido: “Era minha maneira de me vingar dele. Mas isso não significa que eu o esqueci”. E por não esquecer é que ele considera agora o momento ideal para lidar com os desaparecidos do Franquismo – sendo que em 2018 Almodóvar já havia se aproximado do tema ao produzir o documentário “O Silêncio dos Outros”. É ao tratar deste assunto que Almodóvar quase deixa seu colorido constante de lado, usando pela primeira vez fades-to-black em algumas sequências.

Pedro Almodóvar é um diretor que prefere contar histórias de mulheres, e suas personagens são sempre complexas e interessantes. Ele descobriu e alçou ao estrelato muitas grandes atrizes – como a exótica Rossy de Palma, que está em “Mães Paralelas”, Carmen Maura, Marisa Paredes e a própria Penélope Cruz – e com Milena Smit faz uma nova descoberta, dando início ao que torcemos para que seja uma parceria duradoura. Janis, Ana, Teresa se juntam à galeria das personagens fortes criadas pelo diretor ao surgirem nesta sua nova obra-prima. Ser uma Chica de Almodóvar vai muito além de estar à beira de um ataque de nervos: é ser dona da própria história – e também da História de seu país.

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