Mar de Dentro (2022), de Dainara Toffoli

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readApr 13, 2022

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Muitas coisas mudaram para melhor com a internet e as redes sociais. Uma delas foi a conversa sobre maternidade e maternagem. Substitui-se o discurso de que “ser mãe é padecer no paraíso”, de que a maternidade é destino único e certo de todas as pessoas com útero, e agora se fala sobre maternidade real, sobre o peso por vezes esmagador e a parte ruim de ser mãe. Esse discurso salvador faz agora um caminho diferente, igualmente importante: das redes sociais vai para o cinema, através do filme “Mar de Dentro”.

Manuela, ou Manu (Monica Iozzi) é uma profissional bem-sucedida do ramo da publicidade. Ela mantém um relacionamento com um colega de trabalho, Gilberto, ou Beto (Rafael Losso). Com menos de cinco minutos de projeção, a vida dela muda ao descobrir uma gravidez.

Ela não quer o filho, ele quer. No Brasil hipócrita do aborto quase completamente proibido, o corpo é dela, mas a escolha é dele. Depois da cena clássica em que a pessoa no início da gestação analisa a barriga prestes a começar a crescer, Manu tem um sangramento que acende a luz vermelha: ela se afasta brevemente do trabalho, mas quando retorna tem sua carga de trabalho reduzida. Nas primeiras semanas da gestação, ela já sente o baque e percebe que sua vida nunca mais será a mesma.

Numa sequência que parecia construída para Manu descobrir uma traição de Beto, o que ela descobre é o corpo do namorado no chão do apartamento dele. Agora quase sozinha, Manu segue — até porque não há outra opção. E, como também na vida, a gravidez é só o começo da jornada de Manu.

Manu não é uma grávida perfeita e sorridente: ela fuma, bebe e beija um estranho só para voltar a sentir algo. Ela, obviamente e ainda bem, não será uma mãe perfeita.

Joaquim nasce num parto normal — coisa rara no Brasil — mas antes ainda começam os palpites dos avós paternos: por exemplo, os pais de Beto acham absurdo que Manu continue trabalhando com um recém-nascido em casa. Mais desafios seguem, como a amamentação, cuja dificuldade raramente é mostrada no cinema. De volta ao trabalho, Manu procura dar realismo a uma campanha de fraldas, fugindo dos estereótipos antigos da família feliz em que a mãe faz tudo e o pai só está lá ao lado, observando. Novas questões são abordadas, algumas já retratadas com constância — como as noites insones — e outras praticamente inéditas na tela — como a estranha liberdade experimentada ao sair pela primeira vez sem aquele serzinho tão dependente.

O corpo de Manu não volta à forma de antes automaticamente — lembre-se, este é um filme que tem um compromisso com a realidade. Comida congelada e esquentada no microondas vira regra na vida dela. Criam para ela uma rede de apoio, com babás de dia e de noite, sendo que Manu chega a conversar sobre maternidade com a babá da noite. É a maternidade real e moderna mostrada sem floreios na tela do cinema.

O filme consegue seu intento de retratar a maternidade sem romantização graças às mulheres que trabalharam nele em frente e principalmente atrás das câmeras. Vamos dar voz a elas, começando pela produtora Eliane Ferreira:

“[…] acredito que esta repetição de abordagem possa ter a ver com o fato de o cinema ter sido feito, por muito tempo, majoritariamente por homens. O olhar masculino sempre foi tão dominante que, mesmo para as mulheres que fazem cinema, talvez falar sobre maternidade desta forma realista como fazemos em aqui, ou em outras abordagens de outros projetos de cinema, poderia parecer fragilidade.”

A linguagem corporal de Monica Iozzi na fase da gravidez é simplesmente perfeita. Mais associada com a comédia, Monica desponta como atriz dramática e declara sobre o filme:

“[…] o primeiro ponto que me chamou a atenção é que a Manu não tem o perfil que estamos acostumados a ver das mulheres. Ela é uma mulher realmente que adora o trabalho, que é bem sucedida e muito exigente. E ela também tem uma relação livre com um cara e está tudo bem com isso também. Então, me atraiu muito poder mostrar uma mulher assim com um olhar mais contemporâneo.”

A diretora e corroteirista Dainara Toffoli revelou que não foi nada fácil conseguir financiamento para o filme, jornada que começou há uma década:

“Queriam saber qual seria a trama, qual seria a grande história. Para a maioria das pessoas, falar sobre maternidade não seria suficiente. Foram muitos anos para conseguir o financiamento. Percebi que a maternidade real, não idealizada, era um tema tabu. Mas eu precisava falar sobre isso e tinha uma intuição forte de que as mulheres iriam se identificar.”

A outra roteirista do filme, Elaine Teixeira, fala sobre a maternidade:

“Chegamos do hospital com um bebê no colo e uma dura e solitária rotina desaba sobre nossas cabeças. Para a sociedade, a mulher grávida ou com criança pequena é um certo fardo destituído de suas antigas capacidades. Assim, quando a mulher decide ter um filho, ela precisa saber que é uma rotina que vai enfrentar, na maior parte das vezes, sozinha. A licença paternidade é de cinco dias. Um bebê exige 24 horas de atenção. Ter um filho custa caro e não há uma rede de apoio. Quando vemos, estamos tentando dar conta de tudo e abrindo mão das nossas aspirações. Com tanta idealização, o que sobra para a mulher é cobrança, cansaço e um sentimento de culpa constante.”

“Mar de Dentro”, o título do filme, é poético e profundo. Manu não pode ir à praia porque na adolescência quase foi tragada pelo mar. Beto, por sua vez, é apaixonado pelo oceano. Ao engravidar, Manu é invadida por um tsunami de emoções e sensações. Muitas vezes, são as coisas que vêm de dentro de nós que têm o maior poder de nos sufocar e afogar.

“Mar de Dentro” toca em muitos pontos mas não se aprofunda em nenhum deles. É até melhor assim: somos nós, refletindo após o fim do filme, que damos sentido a todas as indagações. Era mesmo chegada a hora de a discussão sobre maternidade real chegar nos cinemas, para que, garantidos os direitos reprodutivos pelos quais lutamos sempre, a maternidade seja cada vez mais uma escolha, e não uma imposição.

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