MARCAS DO TEMPO — O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006)
Breve comentário sobre o olhar dos inocentes e a perpetuação de ideologias do Regime Civil-Militar (1964 a 1985) nos dias de hoje
O filme nacional O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006) foi dirigido por Cao Hamburguer. Conta a história de Mauro, um garoto mineiro de doze anos, que é deixado em São Paulo, no bairro do Bom Retiro, no ano de 1970. Seus pais lhe dizem que estão indo viajar de férias e que vão deixá-lo com seu avô. Mas, também garantem que voltarão a tempo de assistir à Copa do Mundo de Futebol com o filho.
Ao chegar ao apartamento do avô, Mauro fica sabendo que ele acabou de morrer. Assim, o menino é acolhido pela tradicional comunidade judaica do bairro, especialmente, pelo vizinho de porta, Shlomo.
A parte disso, duma perspectiva mais ampla, este pode ser considerado um filme sobre a Ditadura no Brasil. Porém, o interessante mesmo é a postura diversificada adotada por Hamburguer. Ele brinca com este período em que as liberdades eram cerceadas e que havia muito silêncio, do qual ainda se tem muito a dizer. O próprio título do filme demonstra o fenômeno desta falta de explicitude dos fatos; esta que se faz extremamente presente no dia-a-dia do protagonista.
O enredo do filme faz uma crítica contundente ao momento da Ditadura Civil-Militar em que o governo torna-se presente de maneira opressiva no cotidiano das pessoas. Em 1970, o Ato Institucional (AI) nº 5 estava em vigor já há dois anos. Ele foi implementado em 1968, durante o governo do Gal. Costa e Silva.
O AI-5 suspendeu diversos direitos políticos, dentre os quais a liberdade de expressão. Estabeleceu-se, daí, um conflito permanente entre a linha dura militar, então no poder, e a população brasileira como um todo. Naquele momento, todos eram suspeitos de conspirar contra o regime. Utilizava-se, portanto, da lógica da repressão preventiva, que consistia na vigilância e controle cotidiano sobre a sociedade, prática consolidada pela criação do que foi denominado comunidade de informações. Assim, a aplicação do AI-5 resultou num imenso número de cassações, ocasionando numa espécie de auto-castração política para com toda uma geração:
Embora hoje, olhem para aquela época e muitos tenham nostalgia, era uma década em que você, efetivamente, tinha medo de fazer política e participar da vida do seu país. Toda uma geração cresceu com a ideia de que fazer política era correr risco de vida (…), ninguém sabia direito até onde podia ir na oposição. — Fala de Marcos Napolitano, professor de História na USP, no documentário “AI-5, 50 anos: Vozes no Palácio das Laranjeiras”.
Todo esse estado de coisas afeta, de maneira perversa, a própria forma de viver da época. Mauro também é afetado. Ele está afastado de seus pais, perseguidos pela polícia em função de sua atuação política contra o regime.
É importante enfatizar que a temática da Ditadura é empregada no filme de uma maneira diferente, seguindo uma visão cotidiana dos fatos. Nas palavras do professor e psicólogo Eder Amaral, ditas numa entrevista dada pelo programa “Janela Indiscreta”, a Ditadura que mexia com estruturas políticas e que silenciava todo tipo de resistência não é frequentemente representada no filme, porém é, muito mais, aquela que interferia na rotina de um bairro, no silêncio das pessoas sobre certos assuntos que não podiam ser comentados publicamente, num cochicho constante sobre quem era, ou não, a favor do regime que, dentre outras coisas, terminava determinando até as substâncias das pichações nas paredes.
Destaca-se a forma única em que o personagem de Mauro, através de seu olhar ingênuo e infantil, percebe os acontecimentos do ano de 1970. Isto notoriamente enriquece a produção: “de uma maneira muito sutil, e utilizando-se bastante de metáforas, prega-se a ideia de que é a vida cotidiana que forma a história, que gesta os fatos históricos”, afirma Isis Mueller em sua entrevista pelo “Janela Indiscreta”. Em outras palavras, o filme demonstra como a situação do então governo interfere na vida rotineira daqueles que nem envolvimento com a política tinham. Isto é, uma criança como Mauro, que só deveria se preocupar com a Copa do Mundo e em brincar com seus amigos pela rua, acaba se envolvendo, ainda que indiretamente, na questão política.
Com o andamento do filme, torna-se claro que Mauro, mesmo sem saber o que realmente estava acontecendo ao seu redor, enxerga que há algo de errado. Ele, como muitos dos brasileiros da época, não possui noção do contexto político em que está inserido. Vive o que está em seu entorno, relacionando-se com aquilo que entende como a realidade. Mauro não sabe porque não pode viajar com seus pais, e muito menos porque ninguém lhe explica direito o que estava acontecendo. Podem-se destacar momentos como os que Shlomo e Ítalo, um amigo dos pais de Mauro, conversam, deixando o menino desconfiado. Ou quando a polícia aparece no local de trabalho de Ítalo e Mauro presencia um acontecimento extremamente violento, terminando por esconder Ítalo no apartamento do avô.
Todavia, em nenhum momento, Mauro perde a esperança de reencontrar seus pais. Passa boa parte do filme esperando por uma ligação deles, sempre observando a rua, ansiosamente, à procura do fusca azul. Ainda que a expectativa, mesmo para ele, seja vaga, ela nunca perde o sentido. Em outras palavras, Mauro não se deixa levar pela incompletude da espera: vive a vida do bairro e, de diferentes formas, passa a pertencer àquela comunidade. Ele interage com as crianças, vai ao boteco da esquina para assistir aos jogos da copa, adere a algumas práticas judaicas, assiste às partidas de futebol dos moradores do bairro, chega a almoçar todos os dias na casa de algum morador diferente do prédio, etc.
Em 1970, o Brasil começa a se preparar para participar da Copa do Mundo, no México. É necessário comentar sobre como o evento é tratado no filme. Além de ser um momento muito esperado por todos aqueles que moram no Bom Retiro, o próprio Mauro deposita na copa todas a sua esperança por tempos melhores; tempos esses em que seus pais já estariam em casa. Destarte, toda a empolgação que Mauro possuía em relação a copa vai desaparecendo: à medida em que o Brasil vai ganhando as partidas, Mauro vai perdendo, cada vez mais, a esperança de rever seus pais. Ele começa, mesmo que implicitamente, a perceber que, na verdade, eles não saíram de férias, eles não estão voltando, e tem algo de errado…
O Brasil se torna tricampeão e, juntamente com este título, surgem simbologias extremamente importantes, e que terminam por moldar a ideia de muitos brasileiros daquele período sobre a então situação político-econômica do país. Além da grandeza que é atribuída ao Brasil, sendo reconhecido como o “país do futebol”, e a coroação de Pelé como o rei deste esporte, tem-se a ideia de que o Brasil estava começando a dar certo. Havia uma nova verdade, martelada incessantemente na cabeça do povo: o Brasil estava avançando na direção de um grande desenvolvimento, tanto econômico quanto político. Se o futebol vai bem, a política também. Essa ideologia é promovida pelo governo mas, também, pelas mídias televisiva, radiofônica e jornalística.
Seguindo esta linha de raciocínio, por fim, pode-se dizer que O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de maneira geral, diz respeito às ideologias pregadas para o esplendor do regime civil-militar; especialmente, aquelas que perduram até os dias de hoje, reencarnadas de forma caricaturesca. Há uma articulação sombria entre política e entretenimento: o futebol se instrumentaliza como uma grande ferramenta política, para dissipar todas as tensões que dominam o país durante a década de 70.
Amaral afirma que, no ano de 2014, quando o Brasil se tornou a sede da Copa do Mundo, houve um momento parecido. Todas as resistências políticas, em relação ao modo em que o país vinha sendo governado, à maneira como determinadas decisões vinham sendo tomadas e à própria concepção do que era a Democracia (que vinha sendo questionada e problematizada), foram maquiadas em prol da paz social pelo esporte. Usado como um escudo, o futebol se estabeleceu como uma tela de projeção de um Brasil próspero; ainda que, nos bastidores, o país estivesse passando por momentos de forte tensão. Este cenário colocava a necessidade de repensar o real sentido da Democracia, na medida em que ele só se materializava em espetáculos tele-esportivos, e não no dia-a-dia dos brasileiros.
Tudo isso remete a uma presença permanente da estratégia da massificação televisiva dessa paz social pelo esporte e, por contraponto, da intensificação do terrorismo de Estado nas relações cotidianas. Nos dias atuais, num cenário em que a temática do AI-5 volta a ser propalada, é possível estabelecer uma analogia entre ambos os casos. A eterna disputa entre a direita e a esquerda se revela, em pleno 2020, de outra maneira. Tem-se manifestantes de direita, em passeatas e carreatas, uniformizados com a camiseta da seleção brasileira; parecem constituir uma torcida de futebol, quando, na verdade, pedem a implementação do AI-5, a fim de extinguir a corrupção. Tudo isto com a falsa expectativa de que, “uma vez que a limpeza tenha sido feita”, os militares voltariam docilmente à caserna, e devolveriam o pleno poder aos civis.
Talvez, ainda nos dias de hoje, apenas a visão de uma criança, afastada socialmente da implicitude do fazer político, realmente seja fundamental para compreender como a Democracia, num país como o Brasil, se comporta secularmente.
Referências Bibliográficas
Documentário “AI-5, 50 anos: Vozes no Palácio das Laranjeiras”. TV Folha.
Filme “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” (2006). Dir: Cao Hamburger.
MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. A Lógica da Suspeição. São Paulo: 1997
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