Maria Montessori — Ensinando com Amor (2023), de Léa Todorov

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readJul 6, 2024

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Metonímia é uma figura de linguagem em que o todo é representado por uma de suas partes. A metonímia é muito útil no cinema, em especial em cinebiografias: ao mostrar a interação de uma figura a ser destacada com outra figura, que pode inclusive ser fictícia, cria-se uma história de interesse humano. Tomemos como exemplo “O Milagre de Anne Sullivan” (1962), em que a interação entre as personagens reais de Anne Sullivan e Helen Keller gera uma narrativa cativante. O filme “Maria Montessori — Ensinando com Amor” tem muito a ver com o clássico de 1962, começando com a metonímia.

A artista de cabaré Lili D’Algeny (Leïla Bekhti) recebe um dia a notícia do falecimento de sua mãe. Com a notícia recebe de volta a guarda da filha, Tina, uma menina com deficiência. O ano é 1900 e Lili vai de Paris para Roma em busca de um lugar para internar a filha. Ela chega a um instituto beneficente dirigido por Maria Montessori (Jasmine Trinca), médica que tem um filho e que não cria para poder trabalhar — mesmo que não ganhe um centavo com seu trabalho.

Com a ajuda de Lili, Maria acaba descobrindo que música pode ajudar no tratamento e socialização de crianças com deficiência. A música é excelente ferramenta para despertar o interesse das crianças, estimular a criatividade, a comunicação e a interação com outras crianças e adultos. A musicoterapia, na educação especial — modalidade de educação voltada para pessoas com deficiência- pode auxiliar no desenvolvimento da linguagem, da coordenação motora, da socialização e da expressão emocional dos alunos. Por causa de todos esses benefícios, a musicoterapia vem sendo cada vez mais utilizada.

O teor feminista do filme é uma grata surpresa. Maria diz que o casamento não é algo que acontece entre duas pessoas iguais que se amam, é sim um tipo de escravidão. Lili conta que teve seu casamento anulado após o diagnóstico da filha, o que torna Tina uma bastarda. Lili diz que havia falhado no pouco que a sociedade exige de uma mulher: fazer filhos fortes.

Maria diz que o segredo de seu método de ensino é o amor, traduzido na figura materna. Amor maternal é então condição indispensável para o sucesso de qualquer criança. E ela vai mais além: é preciso que a mulher tome as rédeas da maternidade, e não seja escravizada por ela.

Maria Montessori viveu uma situação rara na História: ela, mulher, foi reconhecida pelo método que criou, ao invés do homem que a ajudou levar o crédito. Giuseppe Montesano (Raffaele Esposito), retratado como um grande babaca, foi companheiro de Maria na vida e no trabalho, mas felizmente permaneceu anônimo.

No supracitado “O Milagre de Anne Sullivan”, a educadora cujo nome aparece no título do filme ensina Helen Keller, menina surdo-cega, a se comunicar. Maria Montessori também ensinou milhões de crianças a se expressar. O Método Montessori, baseado na autodeterminação da criança, na liberdade e na atividade espontânea, surgiu da observação, como qualquer método científico. O método coloca a criança no centro e o professor como mero colaborador na educação e diminui a importância de testes e notas. Foi revolucionário, mas, infelizmente, está cada dia mais restrito a escolas particulares caríssimas — o oposto de sua origem junto a crianças pobres e com deficiência.

O título original do filme é “La nouvelle femme”, ou “a nova mulher”. O mundo via um despertar de novas mulheres na passagem do século XIX para o século XX, em especial com o movimento das sufragistas pelo direito ao voto. Mulheres, como a própria Maria Montessori, começavam a ocupar novos espaços, a exemplo das universidades, ainda que em marcha lenta.

Léa Todorov escreve e dirige o filme. É apenas seu segundo filme como diretora, e terceiro como roteirista- ela já apareceu como atriz em três outros filmes, sendo o mais conhecido deles “Memórias da Dor” (2017). Todorov descreve seu novo filme não como uma cinebiografia, mas um recorte da vida (“slice of life”) de uma mulher notável.

Maria Montessori foi a primeira mulher a se formar em Medicina na Itália, em 1896. Como produto de seu tempo, acreditava em teorias hoje desacreditadas — no filme, há uma breve passagem dela medindo o crânio de uma criança com deficiência, com base na obsoleta frenologia. Mas nem por isso pode ser deixada de lado como ícone feminista. Em seus tempos de universidade, não era permitido a ela socializar com seus colegas, nem ir e vir da universidade desacompanhada do pai, e tinha de entrar na sala de aula e se sentar só após seus colegas se acomodarem. Já era hora do mundo conhecer, através do cinema, a trajetória pioneira de Maria Montessori.

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