Maria Schneider: à margem do mundo

Em sua carreira meteórica, a estrela de “Último Tango em Paris” eternizou-se como um dos maiores ícones de rebeldia dos anos 70. Sua ousadia, no entanto, teve um alto preço

Rafaella Britto
Cine Suffragette
11 min readAug 22, 2017

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Nova York, 14 de outubro de 1972: première de Último Tango em Paris. O público oscila entre o choque da beleza e o calor da excitação. O retrato da nova era sexológica — o culto ao obsceno. Para a crítica Pauline Kael, o impacto da obra de Bernardo Bertolucci para a história do cinema é comparável ao de Stravinsky e sua Sagração da Primavera para a história da música. “Este deve ser o mais poderoso filme erótico já realizado, e o mais libertador”, escreveu em artigo publicado na revista The New Yorker.

Nas telas, a violenta masculinidade de Marlon Brando é contrastada a delicadeza e o frescor de juventude emanados dos vívidos olhos adolescentes de uma atriz, até então, desconhecida: bela, intensa e enigmática, Maria Schneider eternizou-se no doce sorriso de Jeanne, a menina-mulher no desabrochar do sexo.

O sucesso — e repúdio — mundial de Último Tango, entretanto, custou à jovem atriz sua sanidade e permanência na carreira cinematográfica: em 2007, após quase 40 anos de tragédia silenciada, Schneider revelou a verdade acerca de sua meteórica ascensão e fatídica queda. O trauma da violação pública trouxe-lhe sequelas e a precoce lucidez acerca do horror dos homens, da fama e do ser mulher.

(Foto: Reprodução)

Em sua efêmera passagem pelo estrelato, Maria Schneider escandalizou a sociedade conservadora da primeira metade da década de 1970. O temperamento rebelde e insubmisso revelou-se ainda cedo: abandonada pelo pai, o ator francês Daniel Gélin, cresceu na fronteira franco-germânica ao lado da mãe, a modelo romena Marie Christine Schneider. Os livros foram responsáveis pelo seu desejo de desbravar o mundo através da arte. “Eu queria pintar, estudei latim e grego”, contou durante o festival Créteil Films de Femmes, onde foi homenageada com uma retrospectiva de sua carreira, em 2001.

(Foto: Reprodução)

A atmosfera revolucionária de Maio de 68 exerceu influência definitiva sobre o espírito da pequena aspirante a artista: aos 15 anos, deixou a casa da mãe e seguiu sozinha para sua cidade-natal, Paris, onde passou a viver da venda de seus desenhos e ilustrações — e, eventualmente, posava como modelo para marcas de jeans. Foi na capital francesa que Maria despertou a paixão pelo cinema. Diante das telas prateadas, a menina sonhadora deleitava-se na “ambiguidade de Greta Garbo”, na “força de Anna Magnani” e na “fragilidade de Vivien Leigh” — “as três atrizes que adoro”, disse.

A oportunidade bateu-lhe à porta quando, em uma de suas andanças pelas ruas parisienses, conheceu Brigitte Bardot durante as filmagens do filme Les Femmes, de Jean Aurel. Bardot já havia contracenado com Daniel Gélin — para a surpresa de Maria, que desconhecia a fama do pai. Sensibilizada, Brigitte amparou a adolescente e tornou-se sua amiga e confidente por toda a vida. “Ela me deu um quarto na casa dela”, contou Maria ao Daily Mail, “e foi através dela que entrei para a Agência William Morris.” Em 1970, Maria Schneider — à época creditada como Maria Gélin — fez sua primeira participação no cinema, no filme de Roger Kahana Madly ou The Love Mates, com Alain Delon. “Ninguém sabe, mas eu fiz seis filmes antes de Último Tango em Paris”, disse em entrevista ao crítico Roger Ebert. “Um foi dirigido por Roger Vadim… Fiz um pouco de teatro e alguns filmes underground. Saí de um deles porque não fui paga. Briguei com o diretor, voltei para Paris e conheci Bertolucci. Ele me ofereceu o papel em Tango”.

Revista francesa fala da estreia de Maria Schneider — então Maria Gelin — no filme “Madly”, com Alain Delon (Foto: Reprodução/CinéFemme)

O ÚLTIMO TANGO: A ASCENSÃO E QUEDA DE UMA JOVEM ESTRELA

Maria Schneider tinha 19 anos quando ascendeu ao estrelato pelas mãos de Bernardo Bertolucci, que lhe ofereceu o papel que era, inicialmente, destinado à Dominique Sanda. Ao ler o script, Maria hesitou porque já havia sido escalada para outro filme com Alain Delon, A Primeira Noite de Tranquilidade (La Prima Notte di Quiette, 1972), de Valerio Zurlini. Afinal, foi convencida por pessoas próximas de que não poderia recusar um papel principal ao lado de Marlon Brando. “Me arrependi de minha escolha desde o início de minha carreira, que poderia ter sido mais calma e harmoniosa.”

Com Marlon Brando em “Último Tango em Paris” (Bernardo Bertolucci, 1972) (Foto: Reprodução)

O drama erótico, que retrata a relação anônima entre Paul (Brando), um sádico viúvo de meia-idade, e Jeanne (Maria), uma garota recém-saída da adolescência, atiçou a ira e a preocupação moral das ditaduras pelo mundo: marco da revolução sexual, Último Tango foi proibido na Espanha de Franco e no Chile de Pinochet; na Itália, Bertolucci — à época, membro do Partido Comunista — foi condenado a prisão por obscenidade. Segundo Maria Schneider, o filme teria afrontado ainda mais os tabus vigentes, pois, no script original, Jeanne era, na verdade, um menino.

Cena de “Último Tango em Paris” (Foto: Reprodução)

No Brasil, a obra foi exibida somente a partir de 1979, durante o processo de abertura do regime militar. A revista Manchete, entretanto, alertava: “Visto hoje, esse filme será a própria candura perto de algumas pornochanchadas exibidas no Brasil”. Até mesmo Maria considerava o filme datado em “estilo, forma e discurso”. De fato, talvez nos dias de hoje, poucos elementos de Último Tango permaneçam como atração válida: a trilha jazzística de Gato Barbieri; a fotografia rica em vermelho e no branco gélido da Paris invernal; porém mais, muito mais, — ao meu ver — é Maria. Desde a primeira vez em que assisti a Último Tango, encanta-me sua presença eletrizante, seus olhos de menina carregados da maquiagem escura que a transforma, a um só tempo, na donzela frágil e na femme fatale; a despretensiosa sensualidade, e, sobretudo, a liberdade e o destemor com que entrega-se de alma e corpo à natureza complexa de sua personagem. Longe das deusas intocáveis de Hollywood, sua figura é real e imperfeita, mas nem por isso menos sedutora e misteriosa.

Maria Schneider como Jeanne em “Último Tango em Paris” (Foto: Reprodução)
Com Marlon Brando em “Último Tango em Paris”, 1972 (Foto: Reprodução)

Último Tango causou frisson por seu forte apelo à perversão sexual: a infame sequência em que Paul sodomiza Jeanne utilizando manteiga como lubrificante permeou o imaginário fetichista de gerações. A cena, contudo, não estava presente no roteiro e foi ideia do próprio Marlon Brando, que, em conspiração com o diretor Bernardo Bertolucci, comunicou Maria Schneider apenas no momento das filmagens. “Eu deveria ter chamado meu agente ou advogado, porque não se pode forçar alguém a fazer algo que não está no script, mas, naquela época, eu não sabia disso”, contou a atriz ao Daily Mail. “Marlon me disse: ‘Maria, não se preocupe, é só um filme’, mas, durante a cena, embora o que Marlon estivesse fazendo não fosse real, eu estava chorando lágrimas reais. Me senti humilhada e estuprada, tanto por Marlon quanto por Bertolucci. Depois da cena, Marlon não me consolou e nem se desculpou.”

Em 2013, dois anos após a morte de Maria Schneider, Bertolucci confessou a violação à atriz: “Às vezes, para fazer filmes, para se obter o que se quer, precisamos ser frios. Eu não queria que Maria fingisse sua humilhação, seu ódio. Eu queria que Maria sentisse… e por isso ela me odiou pelo resto da vida.” A declaração foi feita em um programa de TV, e, quando questionado se se arrependia do ato, o diretor afirmou sentir-se “culpado, mas não arrependido”. Em outra entrevista, concedida no mesmo ano durante o Festival Internacional de Cinema de Rotterdam, Bertolucci acrescenta que “se o filme é bom, a manipulação estava certa.”

CARREIRA METEÓRICA, DESTRUÍDA PELO MACHISMO

A repercussão mundial de Último Tango marcou negativamente a carreira de Maria Schneider, que, durante anos, teve sua imagem associada à da ninfeta promíscua. Carregando o trauma do abuso físico e psicológico, a atriz recusou-se a aparecer novamente nua em cena. “Fiquei muito triste porque eu era tratada como um símbolo sexual e eu queria ser reconhecida como uma atriz, e todo escândalo do filme me deixou louca e eu tive um colapso”. Maria chocou ao declarar-se bissexual e afirmar seu ódio aos homens. Ao recusar ser um mero objeto destinado à excitação masculina, a mídia vendeu sua imagem como a de “um símbolo do cinema que não sabe o lugar que lhe compete” — como escreveu uma revista portuguesa. Um episódio bastante veiculado nos meios de imprensa foi em 1975, quando Maria internou-se voluntariamente em um sanatório em Roma para prestar solidariedade a sua amiga, a fotógrafa Joan Townsend — a quem os jornais apontaram, erroneamente, como sua namorada, numa época em que a visita a parceiros do mesmo sexo em sanatórios e hospitais era estritamente proibida na Itália e em todo o mundo.

Em 1975, Maria Schneider internou-se voluntariamente em um sanatório em Roma em solidariedade a sua amiga Joan Townsend (Foto: Reprodução)

A fama repentina e as mentiras propagadas pelos tabloides tornaram Maria depressiva e suicida. Por sete anos, a atriz lutou contra o vício em drogas. Ela relembrou este período obscuro em 2001, durante o Festival Créteil: “Eu comecei a usar drogas quando fiquei famosa. Eu não gostava de ser celebridade, e, especialmente, eu não gostava da imagem insinuante e maliciosa que as pessoas tinham de mim depois do Último Tango. E além do mais, eu não tinha família para me proteger. Eu não tinha um guarda-costas como Sharon Stone, então eu estava muito exposta. Sofri abuso. Pessoas me paravam nos aviões para me dizerem coisas desagradáveis. Eu me sentia perseguida…”

(Foto: Reprodução)

Ao longo de sua carreira, Maria Schneider atuou em mais 50 filmes, dos quais somente um — à exceção de Tango — é, ainda hoje, aclamado e revisitado: Profissão: Repórter (The Passenger, 1975), clássico de Michelangelo Antonioni do qual Maria orgulhava-se. Para a atriz, Antonioni estava mais próximo daquilo que ela verdadeiramente era. “Ele escolheu não vender sua alma”. Em Profissão: Repórter, um dos três filmes do diretor italiano em Hollywood, vemos uma Maria mais magra, pouco maquiada, com sua voz rouca e cabelos naturalmente castanhos, encarnar a misteriosa companheira de Jack Nicholson. Inteligente e quieta, sua personagem, cujo nome não é revelado, traz a melancolia e o desejo de introspecção. Aqui, mais do que nunca, vemos Maria — a verdadeira, em sua pureza e enigma.

Com Jack Nicholson em “Profissão: Repórter” (The Passenger, 1975), de Michelangelo Antonioni (Foto: Reprodução)

Maria Schneider confrontou a tradicional representação feminina nas telas e lutou por adquirir “papéis interessantes”, que destoassem do velho estereótipo da mulher como objeto de prazer, figura submissa e secundária. Recusando propostas sexistas de diretores como Luís Buñuel e Joseph Losey, realizou um sem-número de filmes cult — alguns bons, outros ruins: trabalhou ao lado de René Clement em La Baby Sitter (1975), thriller mediano produzido pelo lendário Carlo Ponti; com Jacques Rivette no experimental Merry Go-Round (feito no fim da década de 70 e lançado apenas em 1981), uma mistura confusa e improvisada de film noir com road movie que traz o galã da pop-art Joe Dallesandro um pouco menos sexy do que o de costume, e já declinando dos dias de glória da Factory de Andy Warhol.

(Foto: Reprodução/CinéFemme)

Em 1979 recusou o papel no pornô-épico Calígula para realizar um filme “100% feminista”: A Woman Like Eve (Een vrouw als Eva). Dirigido pela cineasta Nouchka Van Brakel, este sensível e poético drama holandês de temática LGBT relata o dilema de Eva (Monique Van de Ven), uma mãe casada sufocada pelos deveres de esposa e dona-de-casa que tem de escolher entre os filhos e a paixão avassaladora por uma jovem hippie de nome Liliane (Maria). Ao lado de The Passenger, A Woman Like Eve é o meu predileto, e surpreende-me que um filme tão primorosamente realizado, e retratando de maneira tão audaciosa e realista um drama ainda presente nas sociedades contemporâneas, seja pouco conhecido mesmo entre os públicos mais seletos de apreciadores da Sétima Arte. Uma obra merecedora de resgate, e que poderá ainda proporcionar debates acerca de questões pertinentes: o jugo da sociedade patriarcal carregado pelas mulheres; o casamento entre pessoas do mesmo sexo; a família tradicional.

Em 1979, Maria recusou o papel em Calígula para realizar um filme “100% feminista”: o romance lésbico A Woman Like Eve, com a atriz Monique Van de Ven (Foto: Reprodução)

Controversa, Maria Schneider personificou o espírito de uma era. A razão de seu declínio não foi O Último Tango: foi o machismo, que quis torná-la mero produto para consumo estético masculino, e, vendo-se derrotado, buscou arruinar sua imagem diante da opinião pública. “A mídia atirou pedras em mim”. A máquina hollywoodiana triturou-a e depois a jogou fora; na Europa, contudo, seu legado é, ainda, respeitado e preservado: durante seu funeral, ocorrido em fevereiro de 2011 na Igreja de Saint-Roch, em Paris, estiveram personalidades como a atriz Claudia Cardinale e o diretor Bertrand Blier. Brigitte Bardot — que acompanhara a amiga durante a longa batalha contra o câncer que culminou em sua morte — esteve presente através de uma apaixonada carta lida por Alain Delon. Pia, companheira de Maria desde a década de 1980, louvou a bravura da amada e despediu-se com fervor: “Ciao Bella, Ciao Maria”, dizia. Suas cinzas foram levadas ao Cemitério Père Lachaise, e, mais tarde, espalhadas nas águas da Rocher de la Vierge, em Biarritz.

(Foto: Reprodução)

Nos versos de sua canção-tributo Maria, Patti Smith evoca a “natureza excitante” e “os devaneios da garota sem nome no deserto de The Passenger”: “Cabelos selvagens. Olhos tristes. Camisa branca. Gravata preta. Você era minha…”

Meu amor por Maria Schneider é imensurável. Com lágrimas nos olhos, recordo aquela que, com seu carisma e singeleza, ensinou-me a ser livre.

Fontes:

“Filmes proibidos: anistia ampla, geral e irrestrita” —Reportagem de Justino Martins para a Revista Manchete , Ano 28— Bloch Editores S.A. — Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1979

Online:

Forget Last Tango: Interview with Maria Schneider by Jackie Bucket and Elisabeth Jenny. Créteil Films de Femmes, 2001

“I felt raped by Brando” — Daily Mail, 19 de julho de 2007

Roger Ebert interviews Maria Schneider — 14 de setembro de 1975

“Last Tango in Paris” by Pauline Kael — The New Yorker, 28 de outubro de 1972

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Rafaella Britto
Cine Suffragette

São Paulo-based writer, poet, teacher, translator and researcher. Lover of classic films, music, traveling and all things vintage.