Medeia por Consuelo de Castro

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readApr 9, 2021

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(Imagem: divulgação)

A tragédia grega nos conta que Medeia era a feiticeira e filha do rei Eestes que ajudou o herói Jasão a conquistar o Velocino de Ouro, uma relíquia que o herói teria de entregar para Pélias, rei ilegítimo de sua terra natal. Após a morte de Pélias, Jasão e Medeia viveram felizes por um tempo, até que Jasão a trocou por Glauce, filha do rei de Corinto, Creonte, e Medeia foi exilada com os filhos. Medeia buscou então uma cruel vingança.

A história de Medeia é universal e toca a todo tipo de público, não tendo ficado restrita aos teatros da Grécia Antiga — aliás, estima-se que esta seja a tragédia grega mais encenada da história. É uma história altamente adaptável, e em 1997 a dramaturga Consuelo de Castro re-escreveu a tragédia para os palcos — sob o título “Memórias do Mar Aberto — Medeia conta sua história” -, dando novos contornos aos personagens e retirando traços de maniqueísmo; sem bons ou maus, a tragédia se tornava mais humana. Em 2020, a companhia de teatro Cia BR116, em comemoração aos seus 10 anos, tinha como plano encenar a peça de Consuelo de Castro, falecida em 2016. Com a pandemia, foi necessário adaptar o plano, e “Medeia por Consuelo de Castro” se tornou o que a companhia batizou de “teatrofilme”.

(Imagem: divulgação)

Para esta empreitada, Bete Coelho, que interpreta Medeia, dividiu a direção com Gabriel Fernandes, também responsável pela fotografia e edição do teatrofilme. Além de Bete, estão no elenco Flávio Rochaa como Jasão, Roberto Audio como Creonte e Luiza Curvo como Glauce.

“Medeia por Consuelo de Castro” já começa com super close-ups poderosos de olhos, bocas e corpos que não seriam possíveis no teatro. Boa parte do teatrofilme, aliás, se passa em close-ups. A fotografia é em preto e branco e os cenários são compostos de maneira criativa. Algumas adaptações, provavelmente por conta da pandemia, são interessantíssimas, como o fato de Medeia apenas falar com Creonte por meio de uma tela e de haver um vidro separando Medeia e Jasão quando eles discutem.

(Imagem: divulgação)

Consuelo de Castro disse que Jasão traiu Medeia como mulher e como guerreira, o que fica evidente em seu texto. Como mulher, por trocá-la por Glauce, embora Jasão use a desculpa de que, assim, os filhos dele e de Medeia serão mais bem-recebidos em Corinto. Como guerreira, a traição é ainda pior, pois quem conhece a mitologia sabe que Jasão jamais teria conseguido o Velocino de Ouro sem a interferência de Medeia. Traí-la como guerreira é não reconhecer a importância de Medeia para o feito e ainda descartá-la quando ela deixou de lhe ser útil. Seriam mulheres realmente seres descartáveis?

Creonte refere-se a Medeia com uma série de palavras tipicamente usadas para xingar mulheres: bruxa, bisca, égua, vadia, vaca, rameira. Fica indignado porque ela entra no templo de Dionísio, deus grego do vinho e do prazer, e grita para quem quiser ouvir: “cessem os trabalhos forçados, vivam as mulheres.” Termina o protesto com: “Só falta gritar ‘viva a democracia’”. O texto foi escrito, repito, em 1997, mas soa atualíssimo, infelizmente.

No teatrofilme, Medeia pode simbolizar muitas coisas, entre elas as mulheres progressistas na política — porque infelizmente há também mulheres na política dispostas a legislar e governar contra os direitos de seu próprio gênero –, que são vistas como ameaça por aqueles como Creonte, que só querem manter a “tradição”. Estas mulheres recebem diariamente ofensas como as que Creonte diz, ainda mais se considerarmos a aparente anonimidade que as redes sociais garantem aos covardes. E da mesma maneira como Creonte se masturba enquanto fala com Medeia, estas mulheres ousadas na política podem ser vítimas de assédio e abuso sexual por parte de seus colegas de plenário.

No texto de Consuelo de Castro, Medeia é acusada de trazer a peste para Corinto. Já ouvimos discurso semelhante ano passado, quando políticos e religiosos, no Brasil e no exterior, declararam que o coronavírus era um castigo divino pelos avanços feministas e da população LGBTQ. Apesar de as mulheres serem mais da metade da população da Terra, ainda são vistas como aliens em muitos domínios e, apesar de serem impedidas ainda de fazer coisas e ocupar espaços, são em geral culpadas pelos problemas que aparecem. Ser mulher é nunca receber uma segunda chance.

(Imagem: divulgação)

“Aquele que trai à pátria trai a si mesmo. Saquear a terra onde se nasce é derramar os próprio sangue”, diz o fantasma do irmão de Medeira, Absirto. Mais uma vez, texto atual, em um mundo em que nunca pararam de surgir Creontes.

Apesar das dificuldades de adaptação para o contexto de teatrofilme, que com certeza surgiram, o resultado é ótimo. Mais uma vez, somos lembrados de que é possível ler, reler, reinterpretar e modificar a tragédia original de Medeia sem que ela perca o sentido e a potência. E é isso que faz da história um clássico.

“Medeia por Consuelo de Castro” está disponível para alugar no serviço de streaming Petra Belas Artes à La Carte.

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