Mulheres que amam mulheres: Een Vrouw als Eva (1979) e Amor Maldito (1984)

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readJun 4, 2024

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A comunidade LGBTQIA+ viu tantas conquistas nos últimos anos — sendo, talvez, a principal a legalização do casamento entre pessoas do mesmo gênero, ocorrida quase que em movimento cascata em diversos países — que nos surpreende olhar para trás e ver como eram nossos direitos, ou melhor, a falta deles, no final do século passado. Ao transportar esta mirada para o cinema, temos uma experiência riquíssima: de mergulho cultural num passado não tão distante, mas tão diferente em alguns aspectos e tão semelhante aos nossos dias em outros. É sobre dois filmes com temática lésbica que nos debruçamos, buscando estas diferenças e semelhanças, e também possíveis comparações.

Een Vrouw als Eva: muito mais que um amor de verão

Holanda, 1979. Duas décadas de rápido crescimento econômico deram lugar à ampla luta por direitos de grupos marginalizados. É neste contexto que a diretora Nouchka van Brakel faz estrear seu segundo longa.

Een vrouw als Eva, sem tradução no Brasil mas cujo título em inglês é A woman like Eve, começa com Eefje (Monique van de Ven) chorando à mesa no meio do almoço comemorativo do Dia das Mães, ao que sua própria mãe reage perguntando ao marido de Eefje: “Ela não está grávida, está?”. Não, ela está apenas exausta, algo que seu marido Ad (Peter Faber) percebe — apesar de primeiro chamá-la de “histérica” — e resolve dando-lhe passagens para que faça uma viagem relaxante ao lado da amiga viúva Sonja (Marijke Merckens).

O destino é à beira-mar, e é onde Eefje conhece Liliane (Maria Schneider), que a convida para conhecer o retiro onde ela vive. Eefje, apresentando-se como “Little Eve” em inglês, fica encantada com o que vê, e ainda mais com Liliane. Eefje volta para casa, mas continua se correspondendo com Liliane, que reencontra em um festival feminista realizado em sua cidade. Eefje agora está apaixonada, e conta isso para o marido, que desmerece o sentimento, dizendo que mulheres se apaixonarem por outras mulheres está na moda, é uma “epidemia”. Mas não há cura nem vacina para esta epidemia.

Quando Liliane conhece Eefje, ela presume que ela e Sonja são um casal. Quando Eefje conversa com uma amiga lésbica, descobre o alívio que é finalmente parar de fingir a heteronormatividade e se assumir. Quando Eefje e Liliane estão comprando um colchão para a cama do filho de Eefje, elas de repente se tornam objeto de curiosidade da vendedora, que quer saber “como fazem” com duas mulheres, ao que Eefje responde: “Com duas mulheres… vai muito bem”. São pequenos detalhes como esses que fazem do filme, abertamente feminista e pró-LGBTQIA+, um artefato de interesse.

Amor Maldito: a homossexualidade feminina no banco dos réus

Brasil, 1984. A ditadura civil-militar, iniciada 20 anos antes, dava seus últimos suspiros, conforme o país era varrido por uma esperança equilibrista e clamava por “Diretas Já!”. No campo do cinema, demoraria ainda uma década até que se iniciasse a chamada Retomada. Nesse contexto de muitas dificuldades, mas também muita expectativa por dias melhores, chegava timidamente aos cinemas um filme: Amor maldito. Primeiro longa-metragem dirigido por uma mulher negra no Brasil, o filme era baseado em um argumento da própria diretora, Adélia Sampaio.

Amor maldito, ao contrário do que o nome sugere, é um filme de tribunal. O que está no centro da trama é o julgamento de Fernanda (Monique Lafond), acusada de seduzir e atrair Sueli (Wilma Dias) para a morte. O que está sendo julgada é a orientação sexual de Fernanda, e em momento algum se busca saber a causa da morte de Sueli. É um julgamento moral, no final das contas.

Em certo momento, o advogado de acusação diz: “pessoas como a ré são como um câncer que deve ser extirpado da família cristã para que não disseminem as suas raízes malditas na sociedade em que vivemos”. Esta é uma das mais leves frases preconceituosas proferidas por aquele que é um dos personagens mais reacionários do filme, ao lado do pai de Sueli, e que parece ter saído de um Brasil mais recente, e mais vergonhoso.

As cenas românticas são filmadas sob um female gaze contaminado e fetichizado. As orgias que acabam em festivais de tapas estão em algum lugar entre o sem-noção e o comentário irônico. Amor maldito é um marco no cinema brasileiro, mas não é o filme revolucionário que todos nós desejávamos que fosse.

O diálogo entre Een vrouw als Eva e Amor maldito vai muito além do fato de ambos terem cenas em tribunais. Enquanto o tribunal é o cenário principal do filme brasileiro, no filme holandês há apenas duas breves sequências em frente a um juiz, nas quais Ad e Eefje lutam pela guarda dos filhos, com Ad descrevendo Liliane para o juiz como uma “sapatão feminista frustrada” que quer destruir famílias.

Ambos os filmes são escritos e dirigidos por mulheres, e Een vrouw als Eva ainda conta com equipe por trás das câmeras majoritariamente feminina. Een vrouw als Eva discute também, e insistentemente, o papel da mulher na sociedade e o machismo.

As atrizes Monique van de Ven e Maria Schneider, com a diretora Nouchka van Brakel ao meio

Se Amor maldito alcançou o status de cult com a reaparição e redescoberta da obra de Adélia Sampaio, Een vrouw als Eva é uma pequena pérola escondida na filmografia holandesa, ainda tão pouco explorada e reverenciada a nível mundial.

O casamento entre pessoas do mesmo gênero foi legalizado na Holanda em 2001, sendo o país o primeiro a fazê-lo. A legalização no Brasil aconteceu em 2013. Para Eefje e Liliane, Fernanda e Sueli, e tantos outros casais, a mudança na lei mais cedo teria sido providencial — porque todas, todos e todes merecemos um final feliz.

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