Nós: série nacional fala sobre assumir-se transexual
“Falam isso como um elogio: a Lúcia é passável. E sou. O que você não sabe é o que eu passei para ficar assim. Passável. Apenas passável.” É esse monólogo verdadeiro e arrebatador da atriz Fabia Mirassos que abre a série “Nós”. Fabia é uma atriz transexual, assim como boa parte do elenco da série nacional sobre transexualidade, mas não sobre a transexualidade dela: quando o marido de Lúcia se assume trans, todos ao seu redor se mostram confusos e até preconceituosos.
A família real brasileira
Romeu (Fernando Eiras) é psicoterapeuta e, numa sequência atendendo um paciente transexual, ele acaba misturando seus problemas com as questões trazidas pelo paciente. Lúcia (Fabia Mirassos) é advogada e por vezes atende de graça mulheres trans com problemas judiciais, como Dalila (Renata Carvalho). Completam a família Manu (Maria Léo Araruna) e Beto (Gustavo Falcão).
Num flashback, nos é revelado que Manu sofreu um ataque transfóbico, sendo espancada pelo pai e pelos irmãos. Acolhida por Romeu e Lúcia, prefere não prestar queixas: quer distância da família de sangue, e sabe que vítimas de ataques como este podem sofrer mais discriminação da polícia do que receber ajuda. Manu diz: “Ela [Lúcia] não é minha mãe de verdade. Ela é muito mais do que isso. Porque ela é a mãe que eu escolhi.” Assim como a maioria das outras reflexões, esta também é feita em uma narração em off.
Agora, Manu, pesquisadora brilhante com mestrado em matemática, acaba de ter a notícia de que não recebeu bolsa de doutorado nem foi aceita no programa de pesquisa. Por que será? Porque não tem gênia travesti, ela conclui. Não tem nem emprego formal para travesti: Manu precisa se prostituir para ganhar algum dinheiro.
Romeu está mentindo para Lúcia, para sua família, para seus pacientes e, o pior, para si mesmo – e ele sabe disso. Não se assumir, viver no armário, pode ser mais “prático” no sentido de não sofrer preconceito, mas é mentir para si mesmo. Mas há pessoas assim, como os clientes do maquiador Beto, que monta homens, com cabelo, maquiagem e roupas, como verdadeiras divas, e os fotografa. Os clientes então se sentem satisfeitos, vez ou outra escolhem uma foto para salvar num pendrive, e voltam a performar a masculinidade de todo dia para a sociedade.
Romeu diz que não é fácil se assumir, como se Manu não soubesse. Manu, frustrada, se define como uma aberração, e Romeu diz que ela está interiorizando o preconceito. Logo ela confessa, em off: “O Romeu me dá raiva. O Romeu me dá pena, tudo misturado. Mas na verdade eu tenho raiva de mim. Eu tenho pena de mim.” Talvez uma maneira de punir a si mesma seja o relacionamento que Manu vive com seu orientador do mestrado, relacionamento abusivo com gaslighting, menosprezo e tudo o mais. Reagir a esta humilhação, para Manu, pode trazer mais problemas que libertação.
A revelação do verdadeiro eu
A primeira coisa que Romeu faz quando Lúcia o vê, no meio da noite, adornado e maquiado como mulher, é pedir desculpa. Ela diz que não tem o que desculpar, fazia todo o sentido, estava na cara que Romeu era trans, só ela não queria ver. Ela pergunta se é um fetiche, e também “cadê o meu Romeu?”. Ele – já ela? – responde: “eu continuo aqui. Eu sempre fui assim.”
Lúcia garante que vai apoiar Romeu, independente das decisões que ele tomar – mas não quer continuar casada. Ela não acredita que a sexualidade é fluída e diz que Romeu é “seu homem”, e não Camila, o nome que quer adotar agora. Reclama que eles sempre tomaram decisões juntos, como um casal, mas Romeu decidiu sozinho “se vestir de mulher”. De repente, ela externa, se deu conta de que não conhece a pessoa que dorme ao lado dela há 10 anos.
Quando Lúcia some durante uma tarde para tentar assimilar as mudanças, Beto diz: “as coisas não podem simplesmente desaparecer, as coisas não podem estar fora dos seus lugares” – marcando bem estas últimas palavras. Esta é a frase de um personagem secundário, um agregado familiar que depende de Romeu, Lúcia e Manu – e da dinâmica deles – para viver a vida sem que ela saia dos eixos.
Frustrado, Romeu diz que “não tem outra explicação: Deus, em estado maníaco-depressivo, descobriu que eu não acredito Nele e resolveu transformar minha vida em um inferno.” Logo depois, seu inferno se intensifica quando o filho dele, o adolescente Paulo (Danilo Maia), o encontra em trajes femininos. Paulo traz à tona o fato de Romeu ter deixado a família, quando o menino tinha oito anos, para se casar com Lúcia. Em flashback, a ex-esposa de Romeu, Adriana (Stella Rabello), ofende Lúcia e proíbe o filho de frequentar a casa. Mas Paulo tem uma boa relação com Manu, com quem tem aulas particulares de matemática, e ao afirmar que “meu pai é viado, a Lúcia é homem”, se sente encurralado quando Manu lhe pergunta o que ela é para ele. A resposta: “você é maneira. Ele [Romeu] podia virar mulher só aqui dentro [de casa], não tá bom?”. Não, Paulo, não é suficiente.
O contraste entre Dalila e Lúcia é uma fonte de tensão importante do último episódio. Quando Dalila se descontrola, Lúcia fala que é por causa de atitudes como aquela que a sociedade diz que trans é barraqueira, e que Dalila precisa “se dar ao respeito” se quiser ser respeitada. Dalila então esfrega na cara de Lúcia que ela se sente superior aos demais transexuais por sua fachada “respeitável”. Mais tarde, Lúcia diz a Romeu: “Eu arranquei do mundo à força tudo que o mundo não queria que eu tivesse nunca.” Inventar outra vida é a especialidade dela.
Polêmicas, influências e ataques
Criada por David França Mendes e Rodrigo Ferrari, com direção geral de Anne Pinheiro Guimarães, a série “Nós” partiu, segundo os autores, do ambiente familiar, “ambiente de amor e conflitos”, sempre com o objetivo de fugir dos estereótipos para criar personagens complexos.
A comparação com a série Transparent da Amazon Prime é inevitável. Transparent conseguiu diversos prêmios e elogios, mas acabou maculada após denúncias de abuso sexual contra o protagonista, Jeffrey Tambor. Mesmo antes das denúncias, o público transexual tinha opiniões divididas sobre a representatividade da série, incluindo o fato de ela ser sobre a reação de pessoas cis a um ente querido se assumindo trans, e ressaltando o óbvio erro de escalar um ator cisgênero para interpretar um personagem transgênero e, assim, diminuir as oportunidades de trabalho para essa fatia da população. Felizmente, “Nós” não comete este erro crasso.
São quatro as pessoas tans no elenco. Maria Léo Araruna é autora e protagonista da peça “Transmitologia”, de 2019. Fabia Mirassos também vem do teatro e fez uma participação na série da HBO “Todxs Nós”, da qual também participou Bernardo de Assis. Renata Carvalho, que interpreta Dalila, já esteve envolvida em uma polêmica transfóbica de grandes proporções: ela é protagonista da peça “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, em que Jesus Cristo volta à Terra como uma mulher. trans e sofre nas mãos dos cidadãos de bem. Condenada por fundamentalistas religiosos, a peça foi censurada no Brasil em diversas ocasiões desde 2017, mas saiu em turnê por vários países da Europa. Se a nação de Deus acima de tudo não quer, tem quem queira.
A série “Nós” levou seis anos da concepção à gravação. Além disso, foi gravada em 2018, e só estreou no Canal Brasil mais de dois anos depois, e foi exibida a toque de caixa, com dois episódios por semana, totalizando apenas três semanas de exibição. Embora a série tenha chegado à televisão três meses após sua finalização, essa mesma celeridade nem sempre foi a realidade para as séries LGBTQ do canal.
Desde o começo de 2019 e do novo governo, aconteceram alguns imbróglios ideológicos envolvendo o Canal Brasil. Outra série de temática LGBTQ, “Toda Forma de Amor”, teve sua estreia na TV adiada quatro vezes entre agosto e outubro de 2019, apesar de ter sido disponibilizada em streaming em junho.
E “Nós” estreia no canal próxima de outra produção LGBTQ, a série animada “Rocky e Hudson – Os Caubóis Gays”. A animação é irreverente e cheia de duplos sentidos e piadas mais explícitas, ao estilo de “Super Drags”, animação nacional da Netflix que teve apenas uma temporada com cinco episódios. O audiovisual brasileiro está cada vez mais inclusivo e, sabemos bem, sofrendo ataques por causa disso.
Apesar de apresentar as tramas de Romeu, Lúcia e Manu logo no primeiro episódio, este não empolga, e pode prejudicar o espectador que gosta de ser arrebatado para decidir se continua ou não vendo uma série. O segundo e o quarto episódios são aqueles que arrebatam, acabando ambos com ganchos fantásticos. Pelo menos a família tradicional brasileira vai passar longe desta série – ainda bem.
A abertura da série lembra um caleidoscópio. Talvez seja escolha meramente estética, mas eu gosto de pensar que tenha a ver com a representação da sexualidade, que não é só preto e branco, muito menos rosa e azul. Toda a conversa sobre sexualidade é complexa – talvez, por isso, seja mais fácil alguém simplesmente odiar o que não compreende do que abrir a mente a novas ideias. Conceitos de sexo biológico, gênero como construção social e sexualidade fluida demandam reflexão e desconstrução de (pré)conceitos para serem ao menos compreendidos. Pedir isso para uma parcela da população seria pedir demais – ou não seria?
No país que mais mata transexuais no mundo, onde a expectativa de vida de um transexual é de apenas 35 anos e onde os índices de assassinatos causados por transfobia só vêm crescendo, “Nós” é uma série NECESSÁRIA. Seus personagens, no fundo, vivem os mesmos dramas que qualquer pessoa, e formam uma família completamente normal – porque laços de sangue não garantem afeto e aceitar os outros pode ser muito complexo até para aqueles que já passaram por um calvário para serem aceitos.