Noviciado (2017), de Margaret Betts

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readNov 1, 2019

--

(Imagem: reprodução)

Como um filme passa, com toda certeza, no teste de Bechdel – tendo mais de uma personagem feminina, com nome, e essas duas ou mais mulheres terem uma cena conversando sobre algo que não sejam os homens? Fácil: faça um filme sobre freiras! Brincadeiras à parte, “Noviciado”, o filme sobre freiras escrito e dirigido por Margaret ‘Maggie’ Betts é instigante, observa e critica alguns dogmas da religião católica e ainda traz a palavra “consolo” como eufemismo para sexo lésbico.

Eu estudei em um colégio católico nos primeiros anos da minha vida escolar. De vez em quando, eu me questionava sobre os dogmas da Igreja – e daí vem meu excessivo uso da palavra “dogma”- e sobre os ensinamentos de uma professora, que nos mostrava um Deus punitivo e pouco misericordioso. Ela não era uma freira, mas sim uma carola – mais sobre essa classe religiosa daqui a pouco. E eu também me perguntava se eu conseguiria viver como uma freira. A reposta óbvia da minha infância era não, porque eu não teria disciplina para acordar cedíssimo para a missa, rezar bastante e ficaria chateada por não ver tanta televisão quanto eu quisesse. Mas eu não sabia de nada.

Margaret Qualley como Cathleen (Imagem: reprodução)

O noviciado é bem mais complexo do que eu imaginava. E na Sagrada Ordem das Rosas, que é retratada no filme “Noviciado”, passar pelo noviciado é uma prova de fogo que poucas meninas aguentam. Isso acontece porque estamos nos anos 60, quando muitas práticas da Igreja eram ainda retrógradas e absurdas, e em especial porque a Madre Superiora (Melissa Leo, arrebatadora), como na maioria dos filmes sobre freiras, é insuportável.

Ao contrário de mim, Cathleen (Margaret Qualley) está convicta de que nasceu para ser freira. Mesmo tendo vindo de um lar não-católico e problemático, ela acredita em Deus e quer experimentar Seu amor todos os dias, pelo resto da vida. A origem dela pode explicar por que ela escolheu a carreira religiosa, mas este não é o principal objetivo do filme. O objetivo é mostrar como as reformas do Concílio Vaticano II impactaram a vida das freiras, focando neste convento e em suas noviças. A Madre Superiora fica possessa ao receber estas mudanças em um comunicado, e mais ainda quando tem sua autoridade questionada por uma freira mais jovem, a irmã Mary Grace (‪Dianna Agron‬).

(Imagem: reprodução)

O noviciado demanda fé e disciplina, sim, mas nada prepararia as meninas para o sofrimento e a humilhação pelos quais elas passariam. Numa época nem tão distante, em que as missas eram rezadas em latim e com o padre de costas para o povo, as meninas se submetem a autoflagelação e ao jejum como forma de punição quando não são perfeitas o suficiente para Jesus, e são encorajadas a denunciar as outras meninas quando elas fazem coisas erradas. Nesse ciclo de punição, o destaque vai para a performance de Morgan Saylor, cheia de medo e vergonha ao ser a primeira a ser submetida à confissão grupal.

Antes do Concílio Vaticano II, as freiras eram consideradas superiores a outros cidadãos, devido à sua suposta proximidade com Deus. É isso o que faz a Madre Superiora de Melissa Leo tão insuportável e ao mesmo tempo tão hipócrita, haja vista que ela aparentemente mal se importa com as noviças ou com o que elas dizem na hora da confissão. A mesma coisa acontece com as carolas de hoje, que, por irem à missa todos os dias, e mesmo sem ajudar outras pessoas, se consideram superiores a quem vai à missa só de vez em quando ou mesmo nem professa uma religião, mas ajuda os necessitados. Qual a utilidade de freiras enclausuradas, aliás?

Melisa Leo como a Madre Superiora (Imagem: reprodução)

Um destaque do lado de fora das paredes do convento é Nora (Julianne Nicholson), a mãe de Cathleen, que deveria parecer vulgar e escandalosa, e na verdade é a voz da razão no meio de uma instituição antiga e hipócrita, que prega a importância do sofrimento para a purificação.

O Concílio Vaticano II teve como objetivo modernizar alguns dogmas da Igreja, como a já referida missa em latim, e assim evitar um êxodo de fiéis. Seguindo este raciocínio, parece que está na hora de a Igreja convocar novo Concílio, pois apesar dos esforços do Papa Francisco, a Igreja Católica continua com visões retrógradas com relação à união de pessoas do mesmo sexo, ordenação de mulheres, o conceito de família, o tratamento dos LGBTs, o aborto e o simples uso de preservativos.

(Imagem: reprodução)

Se há tantas críticas ainda a serem feitas à Igreja, a Margaret Betts podemos fazer apenas elogios. Em seu primeiro longa-metragem como roteirista e diretora, ela já mostra confiança, firmeza, clareza na exploração das ideias e muito talento. Você ainda vai ouvir falar muito de Maggie.

“Noviciado” parte de um fato histórico para construir uma narrativa fictícia que não pretende fazer julgamentos, mas acaba ensinando muitas coisas, como que a mudança quase nunca é fácil. E que amor não é, nem nunca foi, e jamais precisará ser, sinônimo de sacrifício.

--

--