O Acontecimento (2021), de Audrey Diwan
“O Acontecimento” é um filme brutal. Brutal para quem é capaz de se colocar no lugar da protagonista e se perguntar: e se isso estivesse acontecendo comigo? Brutal porque isso está acontecendo com milhares de meninas, mulheres e outras pessoas com útero todos os dias, ao redor do mundo todo. Brutal porque, até nos países onde isso não acontecia mais, há um esforço para que haja um retrocesso e isso volte a acontecer. “Isso” é passar por um aborto ilegal e inseguro — porque sim, existe aborto ilegal porém seguro. “O Acontecimento” condensa em 100 minutos três meses de incertezas, medo, de real tortura que aconteceram com Anne Ernaux, escritora consagrada que teve a ousadia de escrever, com riqueza de detalhes, sobre o aborto que fez em 1963, mais de dez anos antes de a França legalizar o procedimento.
Com vinte e poucos anos, Anne (Anamaria Vartolomei) está cursando o preparatório para faculdade de Letras — almejar ser universitária é algo que a diferencia do resto da família, cheia de trabalhadores fabris — e é uma aluna brilhante. Tudo vem abaixo quando sua menstruação não chega. O pior é confirmado por um médico: Anne está grávida. Segue-se a cena clássica da mulher olhando seu corpo no espelho e imaginando-o mudando. Anne está grávida — e fará de tudo para deixar de estar.
Anne visita outro médico que, ao ouvir dela que quer “continuar seus estudos”, entende na hora as intenções da moça. Suas amigas dizem que não vão ajudar em nada, temerosas que estão de serem presas. Anne não consegue mais se concentrar nas tarefas intelectuais da faculdade e nas conversas inofensivas das outras meninas — no livro ela diz que sua condição a retirou do mundo normal. Semanas após contar sobre seu “problema” para Jean (Kacey Mottet Klein), Anne é apresentada para Laetitia (Alice de Lencquesaing), que lhe dá o contato de uma mulher que faz abortos. Aqui, um adendo: adorei a escolha do nome da intermediária entre Anne e a “fazedora de anjos”, não apenas porque somos xarás, mas principalmente porque Laetitia, no latim, significa “alegria”. É Laetitia quem vai trazer a alegria de Anne de volta.
De Anne Ernaux a Audrey Diwan: comparando livro e filme
O livro de Anne Ernaux — um destes textos cruéis demais para serem lidos rapidamente — é uma leitura curta mas demorada, não por sua complexidade, mas por sua alta carga emocional. Publicado em 2000, portanto quase 40 anos após o acontecimento em si, o texto foi adaptado pela própria diretora Audrey Diwan, com colaborações de Marcia Romano, Anne Berest e Alice Girard. Um trabalho de mulheres para um assunto de mulheres.
Apesar de entendermos a dificuldade que é fazer um filme a partir de um livro composto majoritariamente de memórias e sensações, algumas mudanças feitas do livro para o filme não se justificam. No livro, os três meses que decorrem da descoberta da gravidez ao aborto são meses de um inverno terrível, enquanto no filme o terror acontece no verão. Fica claro que a mudança acontece para que Anne vivencie o acontecimento conforme se aproximam os exames finais de seu curso preparatório, adicionando mais uma camada de urgência. Há também a escolha de criar uma panelinha que não gosta de Anne e de transformar Olivia, a O. do livro, em uma das bullies que acaba virando “salvadora da pátria” na hora H.
E é uma pena, realmente, que nem todos os detalhes do livro tenham sido passados para o filme. Algumas observações poderiam ter sido desdobradas em cenas, como esta, logo no começo do livro: “No amor e no gozo, não me sentia um corpo intrinsecamente diferente do corpo dos homens”. Imagine a potência de uma jovem mulher que se sente igual aos homens quando o assunto é sexo e repentinamente descobre o abismo que separa os gêneros.
No livro, há muitos momentos metalinguísticos em que Anne escreve sobre seu ato de escrever sobre o acontecimento. São momentos linguisticamente mágicos, impossíveis de se reproduzir na tela. Mas também há falas memoráveis no filme, como a resposta que Anne dá ao seu professor quando ele pergunta se ela estava doente: “sim, com uma doença que só afeta mulheres e as transforma em donas de casa”.
A cena do aborto em si, cinematográfica já em sua gênese literária, é bem menos emocionante no filme — mas só para quem leu o livro e pôs-se a imaginar tudo aquilo. Não é uma cena propriamente gráfica, mas pode sacar um espasmo de susto em alguns espectadores.
Durante a narrativa, saltam aos olhos os vários homens que cruzam o caminho de Anne: o ativista pró-contracepção que não pode ajudá-la, o médico N. que sabe que ela quer abortar e prescreve injeções de estradiol para que ela não sofra um aborto espontâneo (e mais tarde prescreve um antiespasmódico uterino para parar o aborto em curso), os muitos homens que demonstram curiosidade genuína sobre sua história, o médico residente que primeiro a maltrata, depois se sente envergonhado por ter maltratado uma universitária (o que é muito mais do que a maioria dos médicos hoje faz), o dr V., médico da família, bom cristão e de direita, que mostra até excitação com o aborto.
Das mulheres, pelo menos ela não recebe reprovação: as melhores amigas demonstram preocupação, O. demonstra curiosidade e acaba até ajudando Anne num momento crucial, L.B. é parça demais e dá o endereço de uma “fazedora de anjos”. Pode não acontecer como em “Retrato de uma Jovem em Chamas”, em que as três personagens principais se ajudam quando uma delas faz um aborto, mas ao menos em “O Acontecimento” as mulheres de sua vida não atrapalham Anne — que, novamente, é algo que nem sempre acontece no mundo real.
Audrey Diwan teve de enfrentar muitas batalhas para filmar “O Acontecimento”. Devido ao tema do filme, ela penou para achar patrocinadores, e ouviu muitas vezes “para que fazer um filme sobre aborto ilegal se o procedimento é legalizado na França?”. Como vimos no último mês de junho nos EUA, uma canetada pode por abaixo um direito considerado consolidado — e, como bem disse Simone de Beauvoir, basta uma crise para que os direitos das mulheres sejam os primeiros a serem questionados.
O Acontecimento na vida das mulheres
O que acontece com Anne acontece todos os dias. É por saber disso que a sequência da tentativa com a agulha de crochê é tão dolorosa para quem é empático. É por isso que as palavras de Laetitia são verdade na França de 1963 e no Brasil de 2022: se você acaba no hospital, ou tem a sorte de alguém colocar “aborto espontâneo” no seu prontuário ou um cretino põe “aborto provocado” e você acaba ou presa ou morta.
Um detalhe pode passar despercebido pela maioria dos leitores e espectadores, mas fornecer combustível para os mal-intencionados: a menção de que uma injeção anticoncepcional poderia liquidar a gravidez. Isso dá base para a fake news de que “anticoncepcionais são abortivos legalizados”. Claro, tanto no livro quanto no filme ficamos sabendo que a injeção era de estradiol, para fortalecer o embrião e evitar um aborto espontâneo. Médicos sendo sacanas acreditando que são Deus não é novidade nem aqui, nem na França.
Com a inserção da sonda, a fazedora de anjos faz a interrupção da gravidez através do estímulo de um parto prematuro, mas nem todo aborto acontece assim. Como dissemos, nem todo aborto ilegal precisa ser inseguro: ele pode ocorrer, com grande margem de segurança, através da administração de pílulas como misoprostol e mifepristona nas primeiras semanas da gravidez, ou como que cirurgicamente se a gravidez já está mais avançada. Este último caso foi mostrado no curta-metragem “Just Don’t Fuck” (1971), da diretora Carole Roussopoulos. Nele, um aborto real é filmado, e feito em frente às câmeras com toda a calma do mundo por profissionais capacitadas e preocupadas com o bem-estar da paciente. Ao pensar no curta, voltamos a um questionamento do livro de Anne Ernaux: “Aborto é ruim porque é proibido ou é proibido porque é ruim?”. Porque não é e nem deveria ser nenhum dos dois.
Para Anne, o aborto foi motivo de orgulho, caminho da salvação, ocasião na qual “não sabia se tinha estado à beira do horror ou da beleza”. O dr N., como talvez também o façam feministas liberais ou homens feministas, tenta induzi-la a transformar o aborto em vitória individual — apesar da violência, ela deixa bem demarcado. Aborto não é algo a ser celebrado nem reprovado. Aborto é algo a ser normalizado. Num filme, como na vida, um aborto não é um final feliz: é sim uma oportunidade de recomeçar.