O confronto ao ideal feminino em Hollywood

Rafaella Britto
Cine Suffragette
Published in
9 min readApr 5, 2017

No intuito de penetrar o imaginário popular, Hollywood empenha-se na construção de mitos. Desde as primeiras décadas da maior indústria cinematográfica do mundo, os homens são reconhecidos por seu heroísmo. As mulheres, entretanto, viviam — e vivem — sob o estigma da beleza, e poucas foram as atrizes, ao longo da história, que confrontaram o sexismo presente na indústria.

A vamp foi o primeiro ideal feminino de Hollywood, e teve em Theda Bara seu símbolo máximo: na ocasião de lançamento do filme “A Fool There Was”, em 1915 (época em que o orientalismo e as doutrinas ocultistas estavam em voga entre os norte-americanos), Hollywood promoveu Bara sob o título de “Serpente do Nilo”, e envolveu a atriz numa aura de mística sensualidade. A indústria reinventou a história de Theda: ela teria nascido no Egito, filha de um escultor italiano e de uma atriz francesa, e crescido no deserto do Saara. Seu nome Theda Bara seria um anagrama de “Arab Death” (“Morte Árabe”).

Theda Bara em 1915 (Foto: Reprodução)

O mito ganhou ainda mais força quando a atriz interpretou Cleópatra na adaptação de 1917, dirigida por J. Gordon Edwards (filme hoje perdido). “Cleópatra” causou escândalo e consolidou Bara como o primeiro símbolo sexual feminino do cinema. Seus exóticos figurinos, marcados por peças risqué (pouco decentes ou chocantes) em ricos detalhes manuais, lançaram moda por sua ousadia.

A ousadia e a mística de Theda Bara em “Cleópatra”, 1917 (Fotomontagem/Reprodução)

Somente mais tarde desconstruiu-se o mito de Theda Bara e descobriu-se que ela, na verdade, era americana, e que seu nome artístico era nada menos que um apelido de infância para seu nome, Theodosia, e uma forma encurtada de seu sobrenome, Baranger. A atriz atuou em 39 filmes, dos quais somente seis sobreviveram intactos até os dias atuais. Bara entrou em declínio na década de 1920. Contudo, o ideal da vamp permaneceu, sendo personificado por atrizes como Pola Negri e Nita Naldi e, mais tarde, reinventado pelas femme fatales do cinema noir.

Theda Bara como Cleópatra, 1917 (Foto: Reprodução)

Detentora de beleza, sensualidade e astúcia, a vamp seduz homens, deixando-os cegos de paixão e os levando à absoluta ruína. É interessante observar que a vamp não é, propriamente, um ser de inteligência, e seu domínio sobre o homem é puramente carnal. Seu aspecto predatório remete ao mito ancestral do Eterno Feminino e da amante nefasta que impede o homem de libertar o deus que há dentro de si. “A mulher que exerce livremente o comércio de seus encantos — aventureira, vamp, mulher fatal — permanece um tipo inquietante”, escreveu Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo”. “Na mulher má dos filmes de Hollywood sobrevive a imagem de Circe. Mulheres foram queimadas como feiticeiras simplesmente porque eram belas. E na pudica hostilidade das virtudes provincianas, contra as mulheres de maus costumes, perpetua-se um velho terror.” (1)

Theda Bara em imagem publicitária de “A Fool There Was”, 1912 (Foto: Reprodução)

Hollywood apoiou-se em estereótipos e determinou padrões para a construção de suas personagens. Atrizes como Rita Hatworth foram recriadas à imagem e semelhança da indústria: filha de dançarinos espanhóis, Margarita Cansino precisou atender às exigências da aparência ideal. A camponesa latina fez clareamento de pele e cirurgias plásticas, e transformou-se em Rita Hayworth, a mais bela ruiva já produzida pelo cinema.

O antes e o depois de Margarita Cansino, mais conhecida como Rita Hayworth (Fotomontagem/Reprodução)

Estrela dos musicais americanos, Judy Garland teve sua vida marcada por tragédias e conflitos pessoais: pequena e de beleza pouco exuberante, Garland sofria de forte insegurança relacionada à sua aparência. Os executivos consideravam-na feia e gorda para os padrões de Hollywood, e faziam-na consumir pílulas e remédios para regular o peso e o sono. “Quando se vive a vida que eu vivi”, escreveu a atriz em suas memórias, “quando você amou e sofreu, foi loucamente feliz e desesperadamente triste — bem, é aí que você percebe que não é capaz de descrever tudo”.

Judy Garland: uma vida marcada por tragédias e conflito com a aparência (Foto: Reprodução)

Numa indústria que preza, primeiramente, pela aparência em detrimento do talento, Marilyn Monroe encontrou dificuldades para desvencilhar-se do estigma da “loira burra” e afirmar-se como atriz respeitada. A indústria insistia em enxergá-la como objeto de prazer e zombava do seu desejo de se instruir. “Que ousadia a dela, expor a carência que tantas mulheres sentem mas tentam de todas as formas ocultar!”, escreveu a jornalista feminista Gloria Steinem. “Que ousadia a dela, uma estrela de cinema, demonstrar uma insegurança daquelas!” (2)

MM tentou, sem sucesso, desvencilhar-se do estigma de objeto de prazer (Foto: Reprodução)

Antes de “americanizarem-se”, as italianas Sophia Loren e Silvana Mangano exibiam livremente — e cheias de charme — nas telonas suas axilas não depiladas.

Sophia Loren não tinha o costume de depilar as axilas até ir para Hollywood (Fotomontagem/Reprodução)

ELAS NÃO QUISERAM SER PERFEITAS; QUISERAM SER REAIS

Enquanto Greta Garbo e Marlene Dietrich retiravam-se do show business temendo envelhecerem diante do público, Anna Magnani lutava pelo direito das mulheres de envelhecer: a italiana orientava aos seus maquiadores que não escondessem suas rugas. “Levei uma vida para consegui-las”, disse.

Anna Magnani: “Por favor, não escondam minhas rugas. Levei uma vida para consegui-las” (Foto: Reprodução)

Katharine Hepburn tornou-se o símbolo da emancipação das mulheres e manteve-se no estrelato por mais de 60 anos, personificando as transformações femininas. Versátil, revolucionária e de temperamento insubmisso (herdado da mãe, uma bem-sucedida sufragista), Kate combinava vigor e fragilidade, e seu estilo era marcado por uma androginia proposital. Para o crítico de cinema Thiago Stivaletti, Kate Hepburn era uma atriz “que provavelmente não encontraria lugar nas telas de hoje.” (3)

Katharine Hepburn: versatilidade, elegância, androginia e longevidade (Foto: Reprodução)

Estrela irrefutável, Bette Davis confrontou o sexismo e lutou pela igualdade salarial na indústria cinematográfica. Ela nunca foi a mais bela, mas isso não importava. “Eu travei batalhas por pessoas que não tinham condições de erguer-se por elas mesmas”, disse Davis à jornalista Whitney Stine, em 1978. “Ganhei uma reputação de difícil — reputação que me aborrece até hoje. Mas eu nunca fui e não sou difícil. Tudo o que eu sempre exigi foi profissionalismo”.

Bette Davis em 1939, em sua casa, lendo os jornais da manhã (Foto: Alfred Eisentaedt/The LIFE Picture Collection/Getty Images)

Davis foi a primeira artista a receber 10 indicações ao Oscar. Em 1941, tornou-se a primeira mulher presidente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Sua permanência na presidência, entretanto, foi breve: ela deixou o posto oito meses depois, alegando que o conselho da Academia queria que ela fosse apenas “uma figura representativa”. “Porque eu era mulher, tinha que ser controlada”.

Bette Davis confrontava a tudo e a todos e, por isso, tinha fama de ser uma mulher difícil (Foto: Reprodução)

Em discurso em homenagem à Bette Davis, no canal TCM, Jane Fonda afirmou: “Acho que era por isso que as mulheres a amavam, porque viam que ela contrariava a moda. Simplesmente ver Bette Davis na tela já era empoderador para as mulheres. Víamos que essa versatilidade, essa profundidade era possível para uma mulher. Já tínhamos mulheres unidimensionais o suficiente. Ela abriu nosso leque de possibilidades.”

Bette Davis em “A Malvada”, 1950 (Foto: Reprodução)

Desde os primórdios do cinema, a maquiagem é um elemento fundamental na construção do mito feminino: maquiadores como Max Factor lançaram cosméticos especiais para serem utilizados por atores e atrizes em cena. Os cosméticos acentuavam traços e escondiam imperfeições como sardas, rugas e linhas de expressão. Assim, o ato de não usar maquiagem era — e ainda é — , por si só, revolucionário. Atitudes libertárias como a de Ingrid Bergman ajudaram a redefinir o conceito de beleza na Hollywood dos anos 1940.

Ingrid Bergman (Foto: Reprodução)

Ao imigrar da Suécia para os Estados Unidos, Ingrid Bergman não levou consigo estojo de maquiagem — e, na verdade, nem sabia o que era isso. “É verdade!”, disse a atriz em entrevista ao Virgin Islands Daily News, em 1965. “Eu me encontrei com a esposa do produtor, a senhora David Selznick, no aeroporto. Eu tinha uma maleta comigo e ela pediu o bilhete para pegar minha outra mala. ‘Que mala?’, perguntei. ‘Oh’, ela respondeu, ‘a mala vem depois?’ E eu respondi: ‘Não, isso é tudo o que eu tenho.’ Ela me perguntou onde estava minha maleta de maquiagem e eu perguntei o que era isso. Hoje em dia eu tenho uma, mas é só para o meu trabalho nos filmes.”

Ingrid Bergman em “Notorious”, 1946 (Foto: Reprodução)

Bergman recusou-se a alterar seu nome para seguir carreira de atriz, e, nas telas, não usava maquiagem — ou não usava nada além do necessário. A musa foi mais longe ao admitir que não tinha segredos de beleza e fazia o que sentia vontade: “Nascer com ossos bons, pele boa e disposição saudável. Eu faço tudo o que eles dizem que não se deve fazer. Eu como e bebo o que eu sinto vontade. Eu fico acordada até tarde.”

Frescor era a marca da atriz sueca (Foto: Reprodução)

Ava Gardner esbanja beleza e sensualidade no filme “On The Beach” (no Brasil, “A Hora Final”, 1959). Já próxima de seus 40 anos, a musa não esconde a celulite em baixo grau.

Ava Gardner, já aos quase 40 anos, revela celulite no filme “On the Beach”, 1959 (Fotomontagem/Reprodução)

O exotismo e, ao mesmo tempo, a delicadeza de Babra Streisand chamaram a atenção desde sua primeira aparição nas telonas. Sua marca registrada é o enorme nariz que constitui seu perfil de beleza singular. Streisand alega que, em seus primeiros anos, foi pressionada a submeter-se a uma rinoplastia.

O icônico perfil de Barbra Streisand, marcado pelo seu nariz grande (Foto: Reprodução)

Em entrevista à Playboy, em 1977, quando indagada acerca do que faz sua voz ser tão especial, Streisand responde: “Meu desvio no septo. Se eu tivesse feito cirurgia no meu nariz, eu teria arruinado a minha carreira.” E acrescenta: “Eu tenho, sim, um rosto estranho. Muda muito de ângulo para ângulo. Às vezes eu me acho muito bonita, e muitas vezes me acho horrível. É uma pena. Mas, por outro lado, eu não vou chorar por isso. Eu tento aproveitar o momento, aproveitar a vida.”

Streisand recusou-se a fazer rinoplastia com receio de que a cirurgia pudesse prejudicar sua voz (Foto: Reprodução)

A moda e os conceitos de beleza alteram-se ao longo da história: das formas roliças de Theda Bara, passamos pelas curvas voluptuosas de Marilyn Monroe, até chegarmos à magreza da atualidade. Os ideais femininos têm em comum a perpetuação da escravidão, da insegurança e do auto-sacrifício diariamente praticado por aquelas que buscam ater-se aos padrões e serem desejáveis. A exemplo das atrizes, questionamos: elas seriam menos belas se ousassem se expor naturalmente, com suas falhas e imperfeições? E, afinal, quem define o que é belo?

Referências:

(1) BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo — Vol. 1: Fatos e Mitos. Tradução de Sérgio Milliet. Difusão Européia do Livro — São Paulo, 1970.

(2) STEINEM, Gloria. Memórias da Transgressão: momentos da história da mulher no século XX (Outrageous Acts And Everyday Rebellions), p. 299. Editora Rosa dos Tempos — Rio de Janeiro, 1995. Tradução de Claudia Costa Guimarães.

(3) Coleção Folha Grandes Astros do Cinema — Vol. 4 — Humphrey Bogart: Uma Aventura na África (1951). Folha de S. Paulo — São Paulo, 2014.

Foto Capa: Reprodução

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Rafaella Britto
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São Paulo-based writer, poet, teacher, translator and researcher. Lover of classic films, music, traveling and all things vintage.