O não tão curioso caso do crítico de cinema misógino

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
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6 min readJul 27, 2018

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Embora Anton Ego, personagem de Ratatouille (2007), seja um crítico gastronômico, a atitude prepotente é a mesma do crítico de cinema misógino (Imagem: reprodução)

Nos últimos dias, algumas notícias surpreenderam um total de zero pessoas na comunidade sensata do audiovisual. Ambas tratavam de misoginia no meio dos críticos de cinema, algo que nós, mulheres que decidimos fazer da análise cinematográfica nossa atividade, conhecemos muito bem.

A primeira notícia foi o resultado de uma pesquisa que mostra que críticos do gênero masculino dão notas menores aos filmes dirigidos e protagonizados por mulheres. Obviamente, é bom termos números para provar o que já sabíamos. E já sabíamos desta parcialidade de que modo? Simples: bastou observar o caso de “Lady Bird”, que por um brevíssimo período foi o filme com melhor avaliação no site Rotten Tomatoes — até que chegou um crítico para estragar a festa da obra-prima de Greta Gerwig. O “crítico” Cole Smithey — que se autoproclama “o crítico de cinema mais inteligente do mundo” — disse ter levado em conta o “contexto” para dar uma nota baixa ao filme — nota que, aliás, ele abaixou ainda mais depois de uma revisão.

Isso significa que é errado não gostar de um filme que a maioria amou? Não. O errado foi o contexto considerado: o crítico deu a nota baixa e o conceito “Rotten” no site porque não considerava “Lady Bird” o melhor filme de todos os tempos, ou seja, ele já viu o filme e deu a nota com a intenção de baixar a nota geral, fazendo com que “Lady Bird” deixasse o topo do ranking no Rotten Tomatoes.

Aqui vem a primeira lição do crítico de cinema misógino: por que ele fez isso? Teria o fato de “Lady Bird” ser dirigido por uma mulher influenciado na cruzada de um homem só para derrubar o filme do topo do ranking? Ora, a atitude diz muito sobre o crítico, como uma total falta de ética profissional e de método. Cada filme é um filme. Ver um filme com uma expectativa alta é uma coisa. O que ele fez foi outra: ele foi ver o filme com o intuito de compará-lo com o “melhor de todos os tempos” na sua concepção. Se eu for ver todo filme esperando algo tão sublime quanto um Bergman ou Fellini, vou ficar muito decepcionada. Na crítica de cinema, não pode haver um padrão a ser alcançado, e só aquele padrão poder receber cinco estrelas.

A segunda notícia foi sobre um crítico e professor na Escola de Cinema Darcy Ribeiro que foi afastado das aulas após 13 alunas denunciarem-no por assédio. Depois delas, outras mulheres da crítica se manifestaram, narrando episódios de desrespeito, invisibilização e ataque direcionado a elas.

Vamos a uma breve história da crítica de cinema. O primeiro crítico de cinema da Inglaterra foi WG Faulkner, que começou a escrever semanalmente sobre filmes em 1912. Nos EUA, antes ainda, revistas exclusivas sobre cinema publicavam, já em 1908, um misto de descrições das histórias dos filmes que estreavam e alguns juízos de valor escritos pelos jornalistas — que nem sempre eram creditados.

Foi só nos anos 20 que, dos dois lados do Atlântico, a profissão de crítico de cinema se desenvolveu. E, na época, a mais conhecida crítica de cinema do mundo era uma mulher: a inglesa Iris Barry. Ela deixou a Inglaterra em 1930, após criticar negativamente um filme escrito e dirigido por Elinor Glyn em solo inglês e ser demitida por isso. Nos EUA, Iris Barry foi uma das principais idealizadoras do arquivo cinematográfico do Museu de Arte Moderna.

Iris Barry e um projecionista do MoMA (Imagem: acervo do Museu de Arte Moderna)

Mesmo com Iris, a crítica se masculinizava, assim como o cinema de Hollywood, que teve em sua “era de ouro” um número mínimo de diretoras, roteiristas, editoras e produtoras. Para cada Pauline Kael, havia vários bons críticos de cinema do gênero masculino, cujos textos circulavam em grandes cadeias de jornais, e mais uma infinidade de críticos medíocres em jornais e revistas de pequena circulação — mas com leitores fiéis.

No Brasil, a primeira pessoa a escrever sobre a imagem em movimento foi a poetisa Elvira Gama. Depois dela, vários escritores brasileiros deram pitaco sobre filmes — como Olavo Bilac, Lima Barreto, Mário de Andrade e Guilherme de Almeida. A partir daí, a maioria dos críticos foi do gênero masculino. Uma tendência que vai na direção oposta de uma realidade observada na maioria dos países: 50% do público que vai ao cinema é de mulheres.

A internet gerou mais espaços para que as pessoas dessem suas opiniões. Isso foi muito bom — porque deu lugar aos representantes de grupos marginalizados que não teriam voz em outras situações — e muito ruim ao mesmo tempo — porque permitiu que qualquer um desse sua opinião, mesmo sem informação, sem pesquisa, sem maturidade para dialogar e ter sua opinião contrariada. O crítico de cinema misógino faz parte desta última categoria.

O crítico de cinema misógino diz que o remake com um elenco todo feminino vai “destruir a infância dele”. Um trauma destrói a sua infância. Descobrir uma mentira grave destrói a sua infância. Refilmarem seu filme favorito e trocar os heróis fodões por heroínas fantásticas não destrói a sua infância — gera representatividade. E não foram poucos os críticos que massacraram “Caça-Fantasmas” e mais tarde reclamaram que as feministas estavam acabando com tudo que era bom só porque a She-Ra do reboot não tem decote cavado. O crítico de cinema misógino é um moleque que não cresceu.

Para salvar o mundo é preciso ter seios gigantes à mostra? (Imagem: reprodução)

O cinema, como a maioria das artes, mexe com as nossas paixões. Isso é natural. O que não é natural é insultar e ameaçar uma crítica que não gostou do seu filme de herói favorito. O que não é natural é julgar a performance de uma atriz ou o desenvolvimento de uma personagem pela porcentagem de tempo que ela fica sem roupa. O que não é natural é fazer observações e piadinhas, em aulas e em textos, para se mostrar superior e ofender outras pessoas. Essas atitudes não existem porque mexem com paixões — existem porque demonstram péssimo caráter.

A lista de críticos de cinema em inglês na Wikipédia tem 21 críticas do gênero feminino e 138 do gênero masculino. No Rotten Tomatoes, mulheres são 32% dos críticos. No livro “1001 filmes para ver antes de morrer”, foram convidados 51 críticos e 17 críticas para escrever sobre os filmes — obviamente, o representante do Brasil é do gênero masculino. Dos membros da Associação Brasileira de Crítica de Cinema, 22 são mulheres e 91 são homens. A crítica de cinema também é um clube do Bolinha.

E sabe o que acontece quando existe um clube do Bolinha no mundo da crítica? Fica cada vez mais difícil quebrar a barreira e entrar neste mundo. Porque os parças chamam seus amigos para eventos, indicam os amigos para dar palestras, participar de júri e de mesa-redonda. Porque os parças veem os amigos assediando e não dizem nada, e quando as acusações vêm à tona, passam pano e defendem o caráter impoluto do brother. Porque os parças não dão cinco estrelas para filmes feitos por mulheres, não compartilham textos de mulheres, não querem saber da opinião das mulheres — mesmo pagando de desconstruídos por aí.

Movimentos como #MeToo e #TimesUp não devem se limitar aos sets de filmagem. Eles devem também atingir o mundo da crítica de cinema. E como em todas as situações, não podemos esperar a mudança vir de cima. A mudança começa conosco: através do apoio e da participação em coletivos como o Elviras, que reúne mulheres críticas de cinema e teve o nome inspirado em Elvira Gama. Ou através do apoio ao Cherry Picks, a alternativa 100% feminina ao Rotten Tomatoes. E, mais do que nunca, a mudança começa quando ouvimos as mulheres, seja as que dão uma opinião sobre filmes ou as que estão denunciando os críticos misóginos.

Aconteceu comigo: o elogio vem, mas está cheio de segundas intenções. É o #MeToo em duas línguas.

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