Olmo e a Gaivota (2014), de Petra Costa e Lea Glob, e a desromantização da maternidade

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
6 min readMay 8, 2019

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A campanha de divulgação de “Olmo e a Gaivota” viralizou nas redes sociais. Ela apresentava algumas atrizes e atores brasileiros, todos vestidos com o figurino e a peruca que a protagonista do filme usa em determinada cena, usando barrigas cenográficas de diferentes tamanhos, falando seus textos para enfatizar um slogan: “meu corpo, minhas regras”.

O slogan, hoje cada vez mais usado em campanhas pela descriminalização do aborto, vale para tudo na vida da mulher — porque o corpo feminino é um espaço de luta política. E nessa luta entra a gestação, tema de “Olmo e a Gaivota”. Embora não seja aceitável perante a sociedade admitir isso, a gestação não é um período fácil para nenhuma mulher, mas é ainda mais difícil para aquelas que têm o corpo como instrumento de trabalho.

Olivia (Olivia Corsini) está ensaiando a peça “A Gaivota” de Tchekov quando descobre que está grávida. Seu namorado, Serge (Serge Nicolaï), também faz parte do elenco da peça. Um conflito se delineia: a peça fará turnê em Nova York e Montreal na época em que a gravidez de Olivia já estará aparente. Ao contar sobre a gravidez e sua intenção de adaptar o figurino para ao menos estrear em Nova York, Olivia é muito repreendida pelo colega Philippe. Ele diz que a gravidez não tem nada a ver com a personagem. Outra colega de trabalho de Olivia, esta uma mulher, diz que Olivia precisa ser realista, porque as necessidades e a realidade dela vão mudar, e ela precisará fazer escolhas — a colega não diz, mas fica claro que a escolha será entre a maternidade e o trabalho.

Tudo piora quando Olivia sofre um sangramento — para o médico ela diz, entre lágrimas discretas, que a única coisa “diferente” que ela fez e que pode ter causado o sangramento foi: eu trabalhei. Segundo o médico, Olivia deve ficar de repouso — ele diz isso enquanto vemos na tela uma imagem de ultrassom com um embrião grande demais para uma gravidez descoberta há pouco tempo.

De repouso, Olivia sente tédio. Mais do que isso: nas palavras dela própria, ela se sente presa, passa a ter medo do compromisso de ser mãe e da possibilidade de perder tudo pelo que lutou em sua carreira. Só então, quando Olivia fala diretamente para a câmera e conversa com alguém que fala em off, que percebemos que o filme “Olmo e a Gaivota” é também um documentário.

Olivia comenta como tantas mulheres narram as maravilhas da gravidez, mas ela não sente nada disso. Ao mesmo tempo, quando pensa nela mesma como mãe, Olivia sente medo. É seu feto que lhe impõe as regras do jogo, e não ela. De fato, a narrativa criada pela sociedade para a maternidade se resume em felicidades sem fim e um amor que mulheres sem filhos, pobrezinhas, são incapazes de experimentar.

Em determinado momento, Olivia diz se assustar com o que uma amiga fala, “como se fosse fácil dar um pedaço de si mesma”. Compartilhar os medos e os estranhamentos ajuda muito a passar por nove meses desafiantes. Muitas mulheres dizem se sentir menos sozinhas quando passam a frequentar grupos de gestantes, tanto presenciais quanto online.

Em uma festa com amigos, Olivia ouve todos aqueles palpites e conselhos não solicitados, e se apavora. Ao menos, Serge parece bem-humorado e atencioso o suficiente para dar-lhe apoio — lembremo-nos de que nem todas as grávidas podem contar com o apoio do parceiro na gravidez. Ele, entretanto, ao ser perguntado sobre como é ser pai, responde: “não sei, ainda não sou pai, meu filho ainda não nasceu”. Isso parece um discurso normal, mas Olivia é considerada mãe desde o momento em que viu o resultado positivo do exame — por que o mesmo não se aplica a Serge? Por que os desafios da gravidez são sentidos de maneira sufocante só pela mãe?

Serge continua com a vida normal. Essa diferença entre as mudanças que maternidade e paternidade impõem à mulher e ao homem, respectivamente, fica mais evidente no caso de Olivia, de repouso em casa. Na sociedade, as diferenças entre mães e pais podem ser vistas em diversas situações. Uma delas é no julgamento: tudo que a mãe faz é julgado, em geral negativamente, enquanto o pai tem a vantagem de ser considerado um super-pai ao fazer literalmente qualquer coisa — como a simples obrigação paterna de olhar os filhos quando a mãe não está, ao mesmo tempo em que a mãe é considerada “desnaturada” por sair sem o filho.

Outra diferença é no tratamento de pais e mães no mundo do trabalho: uma pesquisa da FGV apontou que 50% das mulheres são demitidas até dois anos após terem filhos. Mulheres com filhos, “abençoadas pela maternidade”, são vistas como problemáticas por terem mais chance de faltar ao trabalho por causa dos filhos. Ao mesmo tempo, os homens com filhos podem até receber promoções para “ajudarem a criar” as crianças, e quase nunca perdem empregos e oportunidades por causa dos filhos.

Há momentos em que a ação parece ensaiada, e outras cenas parecem tiradas realmente de documentários, com escolhas mais naturalistas de iluminação e de enquadramento dos personagens. Há também cenas de arquivo do passado de Olivia. São escolhas certeiras de Petra Costa, que conta que, ao saber da gravidez de Olivia, conseguiu encontrar apenas um filme que falava sobre a gestação sem pintá-la como um mar de rosas: “O Bebê de Rosemary”, de 1968. Ela aponta que a razão disso é a falta de mulheres por trás das câmeras, dispostas a filmarem uma visão realista da maternidade — e ela está certíssima: um exemplo recente de filme que não idealiza a gravidez e também é um excelente terror é “Prevenge” (2016), de Alice Lowe.

Sobre o corpo político e o tema escolhido para o filme, Petra Costa diz, em entrevista ao site Glamurama:

“Tudo que é político desse momento de criação é retirado, como um esforço de tirar os direitos da mulher sobre o próprio corpo. Porque o corpo é um lugar extremamente político e os filmes sempre tentaram esvaziá-lo. Ele é quase sempre um lugar de desejo do homem, e não da mulher. […]

E é incrível como não se fala nisso! Se as mulheres tivessem mais acesso sobre a complexidade do que é essa jornada, já facilitaria muito. Não falar das problemáticas que podem vir abre mais portas pra depressões pós-parto e outras milhares de questões que estão ali debaixo do tapete.”

O primeiro passo já foi dado por Petra Cost e Lea Glob com “Olmo e a Gaivota”. Agora é a vez de todas nós lutarmos contra essa visão idealizado da maternidade — porque mães também são mulheres reais.

Todas as imagens foram retiradas do site oficial de Olmo e a Gaivota.

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