Os monstros fora de portas
Uma reflexão sobre o machismo e as relações abusivas do cotidiano.
Este é um guest post escrito por Helena Santos.*
Fora de portas, eles costumam sorrir. Também acenam com frequência, mesmo que se deparem com desconhecidos. Envergam um fato bem passado, com as dobras miraculosamente vincadas e, a despeito de qualquer tendência, aquilo que seleccionam assenta-lhes sempre que nem uma luva. Uns usam um chapéu ou uma boina, sobretudo aqueles que já têm uma certa idade e temem a calvície, qual bicho desavergonhado que carcome o cocuruto. Ei-los a fazer compras, ajudando até a esposa, que, nestas mesmas circunstâncias, pode até cumprimentar os vizinhos e queixar-se daquela dor na anca (ocultando o motivo pelo qual a sente e tudo o que subjaz à maleita). Ama os filhos com fervor, caso os tenha, e desfaz-se em mimos quando se torna tio ou avó (o mesmo sucede quando lhe providenciam um afilhado, com quem possa jogar à bola e estampar comos naquelas cadernetas que ainda se vendem, sobretudo nos lugares onde estes senhores habitam).
Tudo se complica quando estes espécimes regressam a casa. Assim que se põe a chave à porta, o semblante da esposa altera-se. Começa a cerrar os lábios e, volta na vida, deixa tombar alguns utensílios, em virtude dos tremores. Ele já se coíbe de acenar e de sorrir, porque aquilo que se passa lá fora não tem necessariamente de se reflectir cá dentro. Aquando a sopa arrefece, por causa do frio, lá dá aquela pancada na anca, usando uma bengala, uma colher de pau ou até um objecto cortante. Há dias em que abusa do álcool, outros em que nem sequer o cheira. É assim de «feitio», como arengam os que sabem e omitem. Uns são casados, outros vivem em união de facto e outros ainda só namoram. É complicado definir uma faixa etária, porque eles são muitos e continuam a grassar. Frequentemente, contam histórias aos seus amigos (esses são para sempre e merecem elevado quinhão de simpatia), cuja moral remete para os bons costumes. Regra geral, são cidadãos atentos. Temem que as velhinhas tropecem naquele passeio mal calcetado. São os primeiros a assinar aquele documento que visa a construção de um elevador, tudo em proveito dos cidadãos com mobilidade reduzida. Oh, mas em casa, entre quatro paredes, existem muitas pessoas que os temem. Algumas adoptam uma postura mais virulenta, pagando invariavelmente pela sua rebeldia. Outras deixam-se ficar, como se todas aquelas coisas constituíssem, por si só, a casa, à guisa de mobiliário. Há algumas que realmente abandonam e que não voltam. Contudo, os monstros, quais cavalheiros de uma época já esquecida, conseguem sempre atrair outra presa, porque os seus modos, fora de portas, impressionam as mais ingénuas (aquelas que não notam que o olhar é vago, que o olhar é baço, e que os abraços nunca enlaçam as almas, apenas os corpos).
Apraz-me dizer que conheço uns quantos, aqui e em todos os lugares. Esta desformalização da besta não procura assanhá-la, somente convidá-la à reflexão. Nestas circunstâncias, é óbvio que me encontro do lado das que choram baixinho, antes de adormecer. Das que amarfanham lenços e disfarçam nódoas negras (há sempre aquela conhecida que possui uma paleta de maquilhagem, em detrimento de coragem e solidariedade). Porém, há que fazer uma ressalva: também existem monstros do sexo feminino, e eu não os quero ilibar. Mostrem-se, mostrem-se ao mundo! Não vivam em permanente guerra com aqueles que têm o azar de coabitar convosco. Os monstros não existem somente debaixo da cama. Há aqueles que colocam os pés no sofá, ou as mãos na nossa garganta.
*Helena Santos é licenciada em Filosofia pela Universidade Nova de Lisboa.