Pílulas de Cineastas: Agnès Varda

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readMay 24, 2023

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No dia 30 de maio de 2023, a cineasta belga Agnès Varda completaria 95 anos. Ela nos deixou, fisicamente, há quatro anos, mas permanecerá para sempre viva nos filmes que fez, e não foram poucos: o IMDb lista 61 filmes como diretora, feitos entre 1954 e 2019. Com seus mais de 60 anos de carreira, ela é dona de uma obra variada e rica, da qual destacamos hoje quatro filmes, incluindo seu primeiro e seu último.

La Pointe-Courte (1954)

Em um vilarejo de pescadores, os habitantes locais estão às voltas com uma nova legislação restritiva para pesca de mariscos. Um nativo do local (Philippe Noiret) leva a esposa (Silvia Monfort), uma parisiense com quem está casado há quatro anos, para passar alguns dias de verão com ele. Ela chega decidida a terminar o relacionamento, mas mesmo assim aproveita os dias quentes e as celebrações populares — como uma luta em barcos lindamente filmada — e repensa sua decisão.

Este é um filme em dois, sobre um casal e um povo que não necessariamente têm suas histórias entrelaçadas. A maior ligação do homem com os pescadores é o barco semidestruído, no qual ele conta à esposa que seu pai havia sido carpinteiro naval.

Um dos editores do filme é Alain Resnais, que mais tarde seria um prolífico diretor. Como estreia de Varda na direção — uma das raras cineastas que fez primeiro um longa e só depois entrou no mundo dos curtas — “La Pointe-Courte” é um filme sólido, robusto, feito com sentida firmeza por trás das câmeras, incluindo aí uma história que engaja o espectador.

A própria nomenclatura de “avó da Nouvelle Vague” soa mal, mas mostra perfeitamente que a importância de Agnès Varda para o movimento demorou a ser reconhecida. Por que ela não pode ser chamada apenas de “pioneira da Nouvelle Vague”? Hoje, felizmente e merecidamente, ela é reconhecida como tal.

Os Dois Lados da Felicidade (1965)

Você já quis que a vida fosse mais fácil? Você já quis que tomar decisões fosse mais simples? Você já quis abraçar a felicidade, mas teve de desistir porque percebeu que iria machucar os sentimentos de alguma pessoa próxima? E se sua felicidade fosse totalmente possível, e as consequências dela para outras pessoas não importassem? E se a vida fosse completamente descomplicada? Pois saiba que a vida é, sim, descomplicada — se você for um homem.

“Os Dois Lados da Felicidade” conta a história de bigamia de François Chevalier (Jean-Claude Drouot), que se envolve com Émilie (Marie-France Boyer), mesmo sendo casado e tendo dois filhos — a esposa e os filhos foram interpretados pela família verdadeira de Drouot.

São os anos 60, e a câmera de Agnès se demora, com naturalidade, numa mulher que tira seu peito para amamentar seu bebê num almoço familiar. François Chevalier, que de cavalheiro não tem nada, não presta atenção à cena, pois é outra normalidade que lhe interessa: a de amar mais de uma mulher ao mesmo tempo.

Um filme a cores e cujas cores dizem tanto — por exemplo, no final o casal está em harmonia, usando ambos roupas amarelas, enquanto as crianças estão ambas de vermelho — sobre um assunto sério, e uma reflexão única, que só podia vir de Varda — que escreveu o roteiro em apenas três dias -,sobre as infindáveis e intransponíveis diferenças entre homens e mulheres.

Os Renegados (1985)

Há alguns anos, um professor da minha faculdade fez um projeto muito bacana voltando as lentes de sua câmera fotográfica para os invisíveis da sociedade: mendigos, pedintes, andarilhos. Aquelas pessoas que, de fato, a maioria finge que não existe. Mona Bergeron é uma dessas pessoas: invisível para muitos, ela só se torna objeto de interesse depois de sua morte.

Tal qual “Cidadão Kane” (1941), “Os Renegados” começa com a morte de sua protagonista e volta em flashback, não para contar a vida toda de Mona, mas apenas os últimos dias dela.

Se toda mulher já está vulnerável no mundo por ser mulher, imagine quão vulnerável está uma andarilha — e não me venha perpetuar uma cultura machista dizendo que ela escolheu esta vida. Mona recebe cantadas várias vezes, enquanto busca trabalho ou compra comida, não sabe se os homens que lhe dão carona querem apenas favores sexuais e inclusive é atacada enquanto está sozinha num bosque.

Uma andarilha não vive muito e está sujeita aos mais diversos tipos de violência: é isso que o filme nos ensinaria, se fosse uma fábula. E, no mundo atual, podemos dizer que somos todas andarilhas.

Varda por Agnès (2019)

Inspiração, criação e compartilhar. Essas eram as três palavras de ordem para Agnès Varda, a cineasta que adicionava um pouco de documentário até em seus filmes de ficção e, com grande humildade, se interessava mais pelos outros, pelas pessoas reais, do que por ela mesma. Seu último filme é uma conversa com uma plateia atenta sobre sua carreia.

Ficamos sabendo de diversas peculiaridades e detalhes que nos dão vontade de rever suas obras. Em “La Pointe-Courte”, o som ficava em primeiro plano, mesmo quando os personagens estavam se distanciando da câmera. Para “Os Dois Lados da Felicidade”, Agnès se inspirou nas pinturas impressionistas e nas composições de Mozart. Em “Os Renegados”, há 13 planos-sequência, de um minuto cada, a cada dez minutos, indo do lado direito para o lado esquerdo da tela, causando desconforto no espectador — é o oposto da direção de leitura no Ocidente.

Agnès dedica bom tempo às suas instalações como artista visual, muitas delas baseadas no modelo tríptico das pinturas clássicas, mas feitas com imagens em movimento.

O filme termina com Agnès Varda e JR — parceiro no seu penúltimo filme, “Visages Villages” (2017) — sumindo como borrões em meio a uma tempestade de areia. A chama de Agnès se apagaria pouco depois, mas ela deixou um legado brilhante e inspirador. Sorte nossa.

Quer saber mais sobre Varda? Então prepare-se: vem aí o Dossiê Agnès Varda!

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