“Passaporte para Liberdade” e a brasileira que desafiou o nazismo

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
6 min readMar 26, 2022

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Parece mentira, ou mesmo um pesadelo: estamos na terceira década do século XXI e ainda precisamos combater os nazistas, como foi preciso 80 anos atrás. Se é preciso combatê-los, é porque infelizmente — e cada vez mais — há quem os apoie. E para combatê-los, como para tudo na vida, é sempre bom termos exemplos a seguir. Numa época de endeusamento de torturadores, urge resgatar verdadeiros heróis e heroínas da nossa história. Uma destas heroínas é a única brasileira agraciada com o título “justa entre as nações”: Aracy Moebius de Carvalho, cuja história é contada na minissérie “Passaporte para Liberdade”.

Hamburgo, 1938. Aracy (Sophie Charlotte) diz que é convidada do Führer para entrar numa parte isolada da cidade. Nas ruas, membros da juventude hitlerista aterrorizam judeus, retirando seus pertences e atacando-os fisicamente. Concomitantemente, chega à Alemanha para trabalhar no consulado João Guimarães Rosa (Rodrigo Lombardi) — sim, o escritor. Rosa vai para ser cônsul adjunto, e Aracy trabalha no consulado como chefe do setor de passaportes. De início, eles tratam um ao outro com frieza — ela principalmente -, mas concordam que o que está acontecendo com os judeus na Alemanha é um absurdo.

Aracy é responsável pela emissão dos vistos no consulado brasileiro em Hamburgo. Ela emite vistos de turistas para judeus, vistos estes que se tornam de residência permanente na entrada do Brasil. Ela também guarda consigo o dinheiro e as joias dos judeus, devolvendo a eles já no navio, para que não façam a viagem totalmente sem posses. Em situações extremas, ela chega a esconder judeus em seu apartamento até que eles recebam o visto e saiam em segurança da Alemanha. Quando descobre o que ela vem fazendo, Guimarães Rosa, o cônsul adjunto de óculos de aro redondos, decide ajudá-la.

Paralela à história de Aracy corre a trama de Vivi (Gabriela Petry), cantora de origem judia que se relaciona com um oficial da SS, Thomas Zumkle (Peter Ketnath), que escolhe ignorar a ascendência dela. Thomas diz que deve a vida dele a uma mulher judia, a mãe de Hugo Levy, um dos homens que Aracy ajuda. Na história de Vivi há outras situações absurdas, como o regime nazista devolvendo a uma família judia as cinzas do patriarca morto em um campo de concentração.

Quando conhecemos Aracy em 1938, ela é uma mulher divorciada e financeiramente independente que tem um filho pequeno — algo bem pouco comum na época. Ela está aprendendo a dirigir — coisa que nem passava pela cabeça da maioria das mulheres no Brasil na época — e é uma mulher que se impõe, dizendo “não” quando necessário, nem sempre sem medo, mas sempre corajosa.

Lembremos que o Brasil era simpático aos nazistas, e a ditadura do Estado Novo inclusive enviou Olga Benário para morrer em um campo de concentração. Num dos depoimentos no final dos episódios, uma mulher revela que sua mãe escreveu uma carta a Getúlio Vargas pedindo que interviesse para retirar os pais dela do campo de concentração, e pior do que o silêncio, ela recebeu uma resposta negativa do governo brasileiro. O Brasil chegou a proibir a entrada de judeus no país, proibição que foi contornada por Aracy. Na minissérie, é mostrado que foi criada uma cota de menos de mil vistos possíveis por ano para judeus da Alemanha, e só seriam aceitos no Brasil judeus que fossem cientistas, técnicos, industriais ou outras profissões “desejadas”.

O cônsul oficial do Brasil em Hamburgo não quer problemas com os alemães, e por isso aceita os crimes de ódio e outras barbaridades que estão ocorrendo ao seu redor, provando mais uma vez que tão culpados quanto os que fazem o mal são aqueles que assistem e deixam o mal acontecer. Ele chega, inclusive, a dizer que não pode evitar massacres e nem se posicionar contra eles porque diplomatas não tomam partido. Mais uma vez são os indiferentes que fornecem combustível para o mal.

A minissérie mostra muito bem como era feita a lavagem cerebral antissemita dos nazistas. Isso é mostrado através do filho de Aracy, Edu: com dez anos de idade — suficiente para se juntar à juventude hitlerista, diz o diretor da escola — ele frequenta um típico colégio alemão e tem, nas lições de matemática, que calcular porcentagens de judeus e os gastos que “aleijados” dão para o governo alemão. É essa mesma máquina de propaganda e doutrinação que leva uma mulher, espécie de porteira do prédio de Aracy, a demonstrar muito orgulho por seu filho ter ido lutar no front. A partir dessa realidade, percebemos que doutrinação na educação, principalmente na educação moral e cívica, é uma ferramenta do autoritarismo desde sempre.

Algumas falas pontuais são referências pouco sutis a Donald Trump: um nazista fala sobre “fazer a Alemanha grande novamente”, e o embaixador brasileiro, quando procurado, está jogando golfe em vez de trabalhar. Outras falas acendem um sinal vermelho nas nossas mentes, para ficarmos alertas em relação ao culto à personalidade que desemboca em ditadura: isso acontece, por exemplo, quando Guimarães Rosa é acusado de traição por terem ouvido ele falar mal de Hitler. O sinal vermelho está aí: quando criticar um governante for sinônimo para crime de lesa-pátria, é porque a nação já chegou ao fundo do poço.

Thomas, em algumas cenas, parece ser um “nazista bonzinho”, o que incomoda. Thomas nos causa repulsa, inicialmente, não por ser nazista e corrupto, mas por desejar Aracy. Nazistas são a escória da humanidade, e mesmo que estejam entre nós, não deixam de ser escória. E já pudemos ver muitas práticas semelhantes às deles ao longo de nossa história: o assassinato que passa oficialmente como suicídio (algo que aconteceu, por exemplo, no caso de Vladimir Herzog na ditadura militar) e a questão de a traição de um ex-aliado ser punida com mais violência que o normal dispensado aos simples inimigos.

O romance entre Aracy e Guimarães Rosa não atrapalha o foco na ação dela, embora soe de extremo mau gosto uma cena de sexo emoldurada por tiros, bombas e aviões dando voos rasantes. Neste mesmo episódio, o sétimo da minissérie, há um excelente retrato não apenas do transtorno de estresse pós-traumático que acometia os soldados, mas também de mais horrores da guerra e do nazismo — que de “pró-vida” não tem nada.

No começo dos episódios, são usadas imagens de arquivo, algumas inclusive coloridas, para mostrar o avanço do nazismo, a perseguição aos judeus e o apoio popular. No final de cada episódio, vêm os depoimentos de descendentes de pessoas salvas pela coragem de Aracy. Falada totalmente em inglês, “Passaporte para Liberdade” é uma minissérie pensada para o mercado internacional — mas pelos últimos acontecimentos, fica claro que somos nós, brasileiros, que precisamos vê-la, conhecer a história de Aracy e repetir, com força ensurdecedora: nazismo nunca mais.

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