Pose: diversidade revolucionária na telinha

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
7 min readFeb 2, 2023

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Quando “Clube de Compras Dallas” estreou há cerca de dez anos, não me lembro de ver protestos nas redes sociais porque um homem cisgênero — Jared Leto — estava interpretando uma mulher trans. Felizmente, as coisas mudaram — e relativamente rápido. Cinco anos depois de Leto ter ganhado o Oscar por sua performance no filme, uma série de TV estreou: “Pose” tem muitas pessoas trans interpretando personagens trans e fala sobre uma fantástica cultura que eu — e provavelmente muitas outras pessoas- desconhecia quando eu comecei a ver a série: a cultura dos bailes.

Blanca (Mj Rodriguez) define um baile como “uma celebração de uma vida que o resto do mundo acha que não deve ser celebrada”. Um baile é um lugar onde pessoas desfilam vestindo as melhores roupas que compram ou fazem, em busca de veracidade no tema e também da aprovação dos juízes. As pessoas que desfilam são divididas em Casas, e cada Casa é liderada por uma Mãe. Blanca fez parte da lendária Casa da Abundância, mas acaba de fundar sua própria Casa, a Casa Evangelista, após uma discussão com sua antiga Mãe, Elektra (Dominique Jackson). Durante três temporadas acompanhamos as vidas das pessoas que desfilam nos bailes e pertencem a estas Casas.

Por causa da época em que a história é ambientada — a primeira temporada começa em meados dos anos 1980 — sabemos que mais cedo ou mais tarde nos depararemos com uma trama sobre HIV. E isso acontece bem no começo: no episódio piloto descobrimos que Blanca testou positivo para o HIV. É aí que ela decide seguir seu sonho e fundar sua própria Casa para deixar um legado. Sua Casa — como a maioria das Casas provavelmente era — é um verdadeiro lar, com Blanca servindo como uma Mãe carinhosa mas ao mesmo tempo severa. Um momento tocante acontece quando Blanca dá dicas de sexo para um de seus filhos, Damon (Ryan Jamaal Swain), que foi expulso de sua casa e cujo pai só o ensinou sobre sexo entre homens e mulheres, quando ele queria saber — mas tinha medo de perguntar — sobre sexo entre dois homens.

Pray Tell (Billy Porter) lembra Blanca que o HIV traz consigo um grande estigma — lembre-se, a série é ambientada nos anos 80 -, que o então presidente Ronald Reagan inclusive se recusava a dizer a palavra AIDS, que muitas pessoas consideravam que a doença era uma forma de justiça divina, que mesmo enfermeiras se enojavam com pacientes com HIV e que a maioria das pessoas não estava interessada em encontrar uma cura. Este estigma garantia que os LGBTs nunca poderiam ser quem eram, porque isso significaria morte ou, ao menos, o ostracismo.

O luto é um tema constante não apenas por causa do HIV, mas também porque a violência assombra a comunidade LGBTQIA+ de maneira diferente, maior e mais constante. A maioria das pessoas trans não tem emprego formal e precisam ganhar a vida através da prostituição, o que os torna alvos de crimes de ódio. E crimes de ódio contra pessoas trans — especialmente pessoas trans não-brancas — estão cada vez mais constantes. Como Elektra bem define: “Eles não nos matam porque nos odeiam, eles nos matam porque odeiam o que é nos amar”.

Quando dois mundos colidem

Além da comunidade dos bailes, a primeira temporada trouxe uma família perfeitinha dos subúrbios: o homem de negócios Stan (Evan Peters), sua esposa Patty (Kate Mara) e seus dois filhos. Este mundo colidiu com o dos bailes quando Stan começou a sair com Angel (Indya Moore), uma das filhas de Blanca.

Enquanto ele fala sobre o sonho americano, ostentação e seu relógio de ouro de nove mil dólares, o executivo Matt — colega de trabalho de Stan — usa cocaína. O Sonho Americano é hipócrita, e Stan está vivendo este sonho: ele compra um Cadillac e um vestido extremamente caro para sua amada esposa — mas diz a ela que eles não têm dinheiro para uma máquina de lavar louças, e então encontra Angel à noite ou nos finais de semana, pois ele está encantado por ela, a única coisa real que existe em sua vida patética. Mas, como ele mesmo diz, ele sabe “interpretar o papel”, parecer respeitável aos olhos de pessoas como seu chefe, Trump — alguém que era sinômino de milionário nos anos 80 e hoje é sinônimo de reacionário.

Quando ela descobre sobre Angel, Patty pergunta se algo aconteceu na infância de Stan que o fez se tornar gay. Esta mulher suburbana, mãe e dona de casa, pensa que um trauma é capaz de “tornar” alguém gay! Infelizmente, isto é algo em que muitas pessoas ainda acreditam, e ainda mais pessoas acreditavam nos anos 80. Será que nós realmente avançamos?

Nada sobre nós sem nós

Na primeira temporada, provavelmente para fazer dela mais “bancável”, os primeiros nomes nos créditos eram de dois atores cisgênero — Evan Peters e Kate Mara -, cujos personagens eram mais coadjuvantes que principais. Mesmo assim, “Pose” já tinha o maior elenco trans de todos os tempos na televisão e também pessoas trans trabalhando atrás das câmeras como roteiristas e diretores.

Também na primeira temporada, Blanca e sua amiga Lulu (Hailie Sahar) são convidadas a deixar um bar gay porque não queriam drag queens ou mulheres no recinto — a clientela deles é “gay, com menos de 35 anos e branca”, diz o gerente. Isso mostra que há preconceito dentro da própria comunidade LGBTQIA+, como se houvesse uma “hierarquia” de importância, com homens gays no topo de forma misógina.

A segunda e a terceira temporadas focam nas dinâmicas entre as pessoas nas Casas, agora quase sempre sem personagens “de fora”. A segunda temporada se inicia quando Madonna lança seu hit Vogue, uma canção que colocou a cultura dos bailes na mira dos holofotes por algum tempo. Mesmo assim, como as meninas percebem, quando os bailes ganham destaque quem se beneficia disso, tomando o papel central nos bailes, são os homens — mais uma vez mostrando que a letra G em LGBTQIA+ é a identidade mais aceita por quem vê de fora.

Por falar em identidade, ser visto é um dos grandes temas — não importando se ser visto é simbolizado por sapatos vermelhos, como para Angel, ou uma casa de bonecas, como no caso de Candy. Ser visto e ser aceito como você verdadeiramente é por sua família — sua família de sangue ou a família que você escolheu — é algo pelo qual todos ansiamos.

Às vezes o foco muda de Blanca para outras personagens, como Candy, Pray Tell ou Elektra. Esta última tem um episódio inteiro na segunda temporada com muitos flashbacks, mostrando como ela cortou laços com sua mãe transfóbica e provando que podemos escolher nossa própria família — e que uma verdadeira Mãe nunca deixa de ser Mãe para seus filhos. Há também uma frase muito impactante neste episódio sobre como pessoas trans podem ser alvo de violência policial: “O sistema nos culpa ao mesmo tempo em que este sistema nos decepciona”.

Enquanto todos os atores merecem elogios por suas performances, não podemos negar que Billy Porter, como Pray Tell, em geral brilha mais que os outros ao seu redor. Indo da exuberância inigualável à vulnerabilidade — especialmente quando o personagem começa a beber — Porter merecidamente ganhou um Emmy, se tornando o primeiro homem negro e abertamente gay a ganhar o prêmio na categoria Melhor Ator de Série Dramática. Billy Porter, assim como seu personagem, é soropositivo e escondeu seu diagnóstico por anos até poder dizer, através do personagem, tudo o que queria.

“Pose” lidou com assuntos como autoimagem, homens apoiando outros homens emocionalmente, ativismo, masculinidade tóxica, machismo, amigos sendo a família que escolhemos e até mesmo a hipocrisia de alguns fiéis. No quarto episódio da terceira temporada, Pray Tell volta à sua cidade natal e encontra sua tia homofóbica porém religiosa, e também descobre que seu ex-namorado está casado, tem três filhos e é pastor da igreja local — embora ainda ame Pray Tell. O episódio rende momentos tocantes e também um número musical arrasador performado pelo multitalentoso Billy Porter.

Alguns pontos na história são um pouco difíceis de acreditar, em especial a história de amor de conto de fadas entre Angel e Lil Papi (Angel Bismarck Curiel), assim como suas carreiras de sucesso na moda. Mas a história deles tem seu significado, porque a vida não é difícil o tempo todo, e precisamos sonhar e ter a oportunidade de ver outras pessoas realizando seus sonhos. O conto de fadas deles acaba servindo de inspiração para nós, espectadores.

A diversidade não está presente apenas na frente das câmeras, mas também por trás delas. E é isso que garante que “Pose” ganhe 10 de ponta a ponta dos juízes na categoria veracidade. Como disse o criador e produtor da série, Steven Canals: “Esta era uma oportunidade para nós não reescrevermos a história, mas para ter uma história contada por nossas próprias vozes”. Com suas três temporadas, “Pose” é uma série de TV que fez história.

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