Quem Você Pensa que Sou: mulheres e narrativas digitais

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readJul 19, 2019

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(Imagem: reprodução)

Em uma edição que trouxe um filme sobre questões de autoria de obras-primas na literatura (O Mistério de Henri Pick) e outro sobre como literatura influencia a vida e vice-versa (Amor à Segunda Vista), o Festival Varilux de Cinema Francês de 2019 acertou trazendo mais uma narrativa sobre narrativas. Misturando questões literárias e a narrativa digital criada por uma mulher de meia-idade solitária, “Quem Você Pensa que Sou” é um dos melhores suspenses que estrearam recentemente.

Claire (Juliette Binoche) é uma professora universitária na casa dos 50 anos que foi abandonada pelo marido e recentemente teve um caso complicado com o fotógrafo Ludovic. Desolada, ela decide criar um perfil no Facebook como se fosse uma mulher com metade de sua idade real, apenas para stalkear Ludovic. Seu plano naufraga quando ela começa a interagir com um amigo íntimo de Ludovic, Alex (François Civil), e eles acabam se apaixonando. Até quando Claire poderá manter sua mentira?

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Boa parte da ação do filme é contada em flashback por Claire para uma psicóloga, interpretada pela atriz e diretora Nicole Garcia. A partir disso, já é possível começar a desconfiar da veracidade do que é contado: será que Claire diria apenas a verdade para psicóloga — logo ela, que mente na internet e se envolveu com um homem a partir de uma mentira?

Não sei dizer — nem sei se existem pesquisas sobre o assunto — se há mais homens ou mulheres mentindo na internet. Há, claro, aqueles que mentem para fins ilegais, como pedofilia, e outros que, como Claire, apenas desejam se passar por pessoas mais jovens por questões pessoais. Isso, sim, digo com certeza: para mulheres, mais do que para homens, envelhecer é complicado: a mulher envelhecida deixa de ser desejada e, portanto, parece deixar de ser útil. Sabemos, por estudos estatísticos, que mais homens que mulheres usam o Tinder, e a maioria dos usuários do aplicativo tem menos de 30 anos — ou pelo menos diz ter menos de 30 anos. O uso menos frequente do aplicativo pelas mulheres diz muito a respeito do machismo e dos perigos que as mulheres de todas as idades ainda enfrentam para se relacionar à distância.

Um filme é um sistema fechado e altamente controlado, no qual tudo o que acontece e é citado é previamente pensado e está lá por uma razão. Podemos ver isso nas cenas das aulas de Claire. Ela está analisando com os alunos o romance “Ligações Perigosas” — que bem poderia ser o nome do seu envolvimento com Alex. Uma das personagens do livro, citadas por nome, é a Marquesa de Merteuil, uma mulher bela e manipuladora que pode ser um alter ego de Claire, algo que fica patente ao final.

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Nas aulas Claire também analisa longamente a peça “Casa de Bonecas” de Ibsen, com destaque para a personagem Nora. Nora é uma mulher casada e com filhos, que parece ter tudo menos uma coisa essencial: independência. E a independência de Nora só vem em um momento em que ela mente, falsificando a assinatura de seu pai. O mesmo acontece com Claire e ambas, Claire e Nora, descendem por uma espiral de desespero por causa da mentira que lhes deu um pouco de felicidade.

A força motriz de “Quem Você Pensa que Sou” é, sem dúvida, Juliette Binoche, uma das mais talentosas atrizes francesas da atualidade. Dizem que um bom vinho só fica melhor com o tempo — e o mesmo é verdade com as boas atrizes. A Juliette de hoje não perde em nada para a Juliette de mais de 20 anos atrás, quando o mundo todo se surpreendeu com sua merecida vitória no Oscar por “O Paciente Inglês” (1996). Juliette Binoche segue radiante.

“Quem Você Pensa que Sou” é um filme absolutamente surpreendente, cheio de reviravoltas, incluindo duas perto do final que são capazes de fazer a plateia soltar exclamações de surpresa. É um filme que nos fará uma vez mais pensar na veracidade de tudo o que vemos através de um suporte digital — e, talvez, até repensaremos a narrativa que construímos para nós mesmas nas redes sociais.

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