A repressão sexual em “Chamas de verão”

Jess
Cine Suffragette
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5 min readAug 4, 2017

Os anos 60 foram uma das décadas mais produtivas para a carreira de Jeanne Moreau. Do começo ao fim, ela trabalhou com diversos diretores que hoje fazem parte do “cânone” do cinema, como Truffaut, Orson Welles e Buñuel. Foram muitos filmes, muitas performances, algumas muito mais marcadas do que outras. No meio dessa salada fascinante de personagens, uma delas permanece ainda desconhecida do público: a sua Mademoiselle de Chamas de verão.

Chamas de verão (Mademoiselle), de Tony Richardson, foi um filme digerido com dificuldade pela imprensa da época. Alguns o tomaram como pornográfico. Os risos de constrangimento no Festival de Cannes de 1966, ano em que o filme foi lançado, só evidenciaram a dificuldade que o público tinha em levar a sério um filme que se propunha a falar sobre repressão sexual feminina. Apenas o tempo fez jus à proposta de Chamas de verão, quando ele se tornou um objeto cult, em um momento em que a imprensa já venerava Jeanne Moreau pelos motivos que outrora cuspira no seu rosto: a ousadia na escolha de seus papeis.

Atenção! Este texto contém spoilers.

Ambientado em uma comunidade do interior da França, Chamas de verão conta a história de uma professora (Jeanne Moreau) que vive uma vida dupla. Na esfera pública, ela se comporta com recato, sempre de preto, cabelo preso e sem maquiagem. É muito respeitada na comunidade por causa de sua profissão. Já esfera privada, a coisa muda completamente de figura. Ela sai para praticar uma série de delitos, desde incêndios até esmagar ovos de passarinho. Ela tem prazer em praticar essas ações e ver o desespero alheio.

A revelação dessa personalidade mais obscura acontece à noite. Mademoiselle — que significa professora em francês, a personagem de Jeanne não tem nome na história — coloca salto alto, se maquia, enfim, se embeleza para praticar o mal. Quando ela está vestindo a máscara de professora de reputação séria, suas roupas cobrem tudo e seu cabelo está preso. Não há maquiagem, não há traços que possam deixá-la mais atraente.

Em uma noite em que mais um incêndio criminoso acontece, ela nota a presença de Manou (Ettore Manni), um lenhador italiano itinerante da comunidade. Mademoiselle sente-se tremendamente atraída sexualmente por ele, mas não consegue admitir. A maneira que ela encontra para expurgar esse sentimento é punir Bruno ( Keith Skinner), filho de Manou, aluno de sua classe. Ela passa boa parte de Chamas de verão humilhando-o, seja pelas suas vestimentas ou pela maneira como ele fala francês.

Os incêndios, de todas as maldades praticadas por Mademoiselle, são os mais significativos. Quando ela coloca fogo na comunidade, é como se ela estivesse exteriorizando algo que há dentro dela, uma fogueira que não pode queimar, porque ela é mulher. Porque ela precisa ser “respeitável”. Ela enxerga outras com Manou e isso a enche de ódio, pois não lhe é permitido ter prazer. O prazer feminino é visto com nojo e ódio pela personagem.

Uma das passagens mais emblemáticas da repressão feminina acontece quando Mademoiselle aparece em frente ao espelho colocando esparadrapos nos seios. Ela os posiciona em forma de cruz, em uma clara alegoria ao catolicismo. Qualquer demonstração da carne precisa ser escondida. Quanto mais escondido, melhor.

Os esparadrapos e a repressão feminina.

Mademoiselle passa a observar Manou na floresta cortando lenha. Em uma de suas saídas, ela acaba encontrando-o. Esse primeiro encontro é especial, uma vez que estabelecerá a tônica da relação entre eles. Manou tem uma cobra escondida debaixo da roupa e tenta mostrá-la à Mademoiselle. Como somos da geração ela faz a cobra subir, sabemos o que Tony Richardson quis dizer ao nos mostrar a cobra e colocar na boca de Manon as seguintes palavras:

Pode tocar. Ela [a cobra] é gentil.

Esse primeiro encontro cheio de insinuações sexuais leva ao grande encontro entre eles. Na verdade, com o perdão da palavra, leva à grande foda deles. Eles se encontram à noite, na floresta, com o objetivo de transar. Será a grande noite de Mademoiselle, a oportunidade única que ela terá para se libertar de todas suas amarras.

No entanto, essa libertação nos é apresentada de uma maneira bastante questionável. Na suposta noite da libertação, Mademoiselle passa por situações nada libertadoras. Ela é humilhada pelo parceiro e isso é apresentado como prazer. Em um determinado momento, ele cospe no rosto dela e a beija. O filme confunde pegar de jeito com brutalidade e humilhação. Além disso, Manon a trata literalmente como um animal: ele assovia para ela, exatamente como fazemos para chamar um cachorro. Mademoiselle vem de quatro em direção a ele.

Fica a questão: que tipo de relação sexual está sendo veiculada neste filme? Será que foi libertador para a personagem? Eu acho que não.

Talvez o maior problema de Chamas de verão seja o fato de associar a frustração sexual com maldades. Isso quer dizer que Mademoiselle seria da forma que é porque é, com o perdão da palavra mais uma vez, mal comida. É como se estivéssemos de volta à quarta série, quando meus colegas, para xingar a professora, diziam que ela chata porque era mal comida.

Ainda assim, Chamas de verão tem seu valor pela coragem de Jeanne Moreau entregar-se a um personagem tão complexo, que ela interpreta com maestria. Mademoiselle é multifacetada, e a discussão sobre ela não acaba aqui. Como uma crítica da época bem colocou: “é um filme que nos incomoda muito”. Se não fosse para incomodar, Jeanne Moreau nem sairia de casa.

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Jess
Cine Suffragette

Tradutora, noveleira e apaixonada por cinema.