Rosalie (2023), de Stéphanie Di Giusto

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readAug 28, 2024

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Geralmente é no contexto circense que ouvimos falar da “mulher barbada”. Atração de circo nos séculos XIX e XX, a visão de uma mulher com uma barba era garantia de visitantes sedentos para sanar sua curiosidade. Só quem já foi vítima de bullying e tratada como atração para os outros rirem sabe como deve ter se sentido uma mulher barbada levada à força ou pelas circunstâncias para os shows de horrores. Mas exibir-se também poderia ser um ato de resistência. Ao menos é assim para “Rosalie”.

Na primeira sequência do filme, Rosalie (Nadia Tereszkiewicz), a personagem-título, desperta sobressaltada de um pesadelo recorrente. Enquanto acordada, tem também uma apreensão: será que Monsieur Abel Deluc (Benoît Magimel), com quem contraiu núpcias sob encomenda, a aceitará como ela é?

É na noite de núpcias que Abel descobre o peito peludo da esposa e se enfurece. Ela e o pai, com quem o casamento foi arranjado, contaram uma “mentira monstruosa” para o incauto noivo. Mas para Abel, empalhador e dono de um café sempre vazio, a mentira o salva. É por causa da presença de Rosalie que o café de repente se enche de curiosos e prospera.

A história se passa no nem tão longínquo tempo dos “freak shows”, shows de horrores que exibiam pessoas com deficiência como verdadeiros fenômenos. Rosalie é inspirada em uma destas atrações, Clémentine Delait, que viveu na segunda metade do século XIX e usou sua característica curiosa para manter aberto um café no noroeste da França. Ao contrário de Rosalie, ela pediu permissão governamental para usar roupas masculinas, o que lhe foi permitido em 1904. Em 2005, a história de Clémentine se tornou pública novamente quando foi leiloado seu caderno de recordações, contendo 50 páginas de reflexões, fotos e recortes de jornais.

Além dos pelos em demasia, Rosalie é marcada por cicatrizes de automutilação — algo a que nós, pessoas maltratadas por uma sociedade preconceituosa, às vezes recorremos. Abel também é um homem literalmente marcado: tem uma grande cicatriz nas costas, resultado de combate na mais recente guerra travada pela França. O reconhecimento das cicatrizes de um pelo outro é parte da criação de uma afeição entre eles.

A condição de que padece Rosalie é chamada de hipertricose, quando há pelos por todo o corpo. Mas há também o hirsutismo, quando há pelos em demasia em mulheres nos locais onde eles costumam aparecer em homens, como no queixo. O excesso de pelos, não no extremo da personagem mas comumente nos casos de hirsutismo, pode ser sintoma da Síndrome dos Ovários Policísticos.

Rosalie reza para Santa Wilgefortis, uma mártir que, de acordo com a lenda, fez um voto de castidade e rezou para se tornar repulsiva. O resultado da súplica foi o surgimento de uma barba, por causa da qual seu pai teria mandado crucificá-la. É na igreja que mulheres de bem passam entre si uma foto sensual da mulher barbada, enquanto o padre faz um sermão alertando contra os lugares de má reputação como o café de Rosalie.

No meio da floresta, com o queixo coberto pela vistosa barba, Rosalie se masturba. Fica claro para nós — e para os vizinhos e clientes de Abel — que aquele é um casamento que nunca foi consumado, apesar das tentativas dela, que deseja um filho. Abel e Rosalie encontram prazer separados — ela sozinha, ele com uma prostituta.

Para um fotógrafo, Rosalie declara que “nunca é simples ser mulher”. Para ela, exibir seu corpo coberto em pelos é um ato de resistência. Seu maior medo, o do pesadelo recorrente, é se exibir e por isso ser machucada por quem ama. Porque é isso que importa: a opinião e aprovação de quem amamos. Aos outros, como aconselhava minha avó, dá-se o desprezo — desde que não deixemos de ser quem somos e nunca percamos o que nos faz especiais.

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