Segunda Chamada escancara a dura realidade da educação no Brasil

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readDec 17, 2019

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(Imagem: reprodução)

Cada vez mais, as novelas brasileiras estão perdendo a qualidade – ou seria mantendo a qualidade medíocre? – enquanto as séries ficam cada vez melhores. Para fazer companhia a títulos como Sob Pressão e Aruanas no filão de boas séries, Segunda Chamada chegou mostrando uma realidade desconhecida da maioria – em especial dos poderosos, que reclamam das greves de professores e acreditam que gasto com educação é desperdício e não investimento.

Lúcia (Débora Bloch, brilhante) é uma professora de português que ficou um período afastada após uma grande perda. Ela volta à sala de aula por necessidade e por paixão: ensinar é imprescindível em sua vida. Ela dá aulas no período noturno na Escola Estadual Carolina Maria de Jesus, localizada em uma comunidade carente. Seus alunos têm idades diversas, mas em comum as várias dificuldades que fazem com que muitos parem de estudar. Por precisarem trabalhar de dia e por vezes cuidar de suas famílias, a escola para eles fica em segundo plano, podendo inclusive sair da órbita de necessidades a qualquer momento.

(Imagem: Instagram Um Filme Me Dissse)

Marco André (Silvio Guindane), professor de biologia, acaba contratado para dar aulas de artes na escola, onde passará por um forte choque de realidade. Sônia (Hermila Guedes) é professora de história, presa em um casamento moribundo com um homem violento, trabalha em excesso e por isso usa remédios para se manter acordada – e frustrada. Eliete (Thalita Carauta) é professora de matemática, sempre pronta para dar dicas diversas aos alunos, apagar incêndios e dar a volta por cima.

Os alunos também têm sua parcela de problemas. Natasha (Linn da Quebrada) é travesti e luta para ser respeitada dentro da escola. Solange (Carol Duarte) não tem com quem deixar a filha pequena, e por isso leva a menina para a escola… e a abandona lá. O marido de Dona Jurema (Teca Pereira) não aceita que ela volte a estudar, porque “lugar de mulher é em casa, do lado do marido”. Valquíria (Georgette Fadel), depois de frequentar as aulas, volta para a cadeia para dormir. A mãe de um aluno decide assistir às aulas com ele para evitar que ele seja abocanhado pelo tráfico, como o irmão já foi. Há alunos venezuelanos, que dependem da venda de lanche na escola para se sustentar. Há alunos como Rita (Nanda Costa), mãe de três filhos que está esperando para fazer uma laqueadura no sistema público de saúde. Há também alunos como Silvio (José Dumont), que sequer têm onde morar.

(Imagem: reprodução)

O diretor Jaci (Paulo Gorgulho) matricula seu filho Léo (Leonardo Bittencourt) na escola como castigo por o garoto ter “vacilado” na escola particular. Não importa onde você estudou, você com certeza conheceu alguém como Léo: prepotente, antipático, sempre reclamando e criando intrigas. Uma das intrigas dele envolve chantagear a professora Lúcia, que mantém um caso com Jaci.

“Segunda Chamada” mostra também os problemas de infraestrutura tão comuns às escolas públicas, bem como trata de temas como intolerância religiosa, transfobia, xenofobia, machismo, direitos reprodutivos, tráfico de drogas, violência doméstica e muitos mais. É, em resumo, um microcosmo da sociedade brasileira.

“Segunda Chamada” foi criada por três mulheres – Carla Faour, Julia Spadaccini e Jô Bilac – e conta com direção artística de Joana Jabace. Joana optou por gravar a série em locação, na sede abandonada de uma escola paulistana. Isso adiciona fidelidade ao estilo da série, e para muitos espectadores será a primeira vez que eles verão a realidade da escola pública brasileira.

Julia Spadaccini, Joana Jabace e Carla Faour (Imagem: Mauricio Fidalgo / Globo)

No final de cada episódio, alunos reais da Educação de Jovens e Adultos – comumente chamada de EJA – dão depoimentos sobre suas trajetórias e seus sonhos, mostrando como nós costumamos não ver nossos privilégios. Nós, que terminamos a vida escolar no tempo esperado, que nunca estudamos à noite ou que sempre frequentamos colégios particulares, não temos noção de como somos privilegiados. Felizmente, a ficção é capaz de nos mostrar isso, ao mesmo tempo em que cria experiências de empatia. Nunca uma série foi tão diversa e necessária – e, graças ao sucesso de público e elogios da crítica, a segunda já está confirmada.

Vida longa a Segunda Chamada!

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