Sessão Filmicca: O Orfanato (2019), de Shahrbanoo Sadat

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
4 min readSep 4, 2024

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Em agosto de 2021, o Talibã retomou o poder no Afeganistão. As consequências foram terríveis. Já escrevemos aqui sobre filmes, feitos antes desta data, que retratam como é ser mulher sob o Talibã. Mas o Afeganistão não é só Talibã: um país com uma História riquíssima, atravessado por muitos povos e culturas. E não há veículo melhor para se explorar e reviver a História do que o cinema.

O filme “O Orfanato” se passa em 1989, durante os dias finais do regime pró-soviético. Qodrat (Qodrattollah Qadiri) é um menino de 15 anos que trabalha como cambista cinematográfico: compra vários ingressos na bilheteria do cinema e depois fica na porta revendendo-os a preços exorbitantes. Sua atividade é interrompida quando é pego pela polícia, levado para interrogatório e dali encaminhado para um orfanato com outros “delinquentes juvenis”.

Os sonhos de Qodrat não cabem em nenhum orfanato, mas cabem numa sala de cinema. Isso porque ele sonha com números musicais, ao estilo Bollywood, sobre amor e amizade. Quando não está sonhando dormindo ou acordado, o garoto assiste a seus novos amigos jogando xadrez contra um rudimentar computador e é por vezes esmagado pela hierarquia construída entre os meninos do orfanato.

A trama é ambientada numa época em que russo era ensinado nas escolas do país e as mulheres podiam arranjar emprego como professores ou mesmo diretoras de grupos escolares. Apesar de todos os pesares que vinham com a dominação soviética, no início do filme o Afeganistão era uma República. Ao final da projeção, havia se tornado um Estado Islâmico que havia coberto o país com um véu de apatia.

“O Orfanato” é um filme verdadeiramente internacional. Baseado nos diários não-publicados de Anwar Hashimi, que interpreta o supervisor do orfanato e ainda cuida dos figurinos, foi financiado por diversas organizações europeias, o que se reflete na equipe por trás das câmeras. A diretora de fotografia é a polonesa Virginia Surdej, que depois fez “The Blue Caftan” (2022). A francesa Alexandra Strauss assina a montagem, enquanto muitos se encarregam da direção de arte, incluindo o português Bruno Duarte.

“O Orfanato” é o segundo filme em uma planejada pentalogia tecida a partir dos diários de Hashimi. O primeiro filme da pentalogia é “Lobo e Ovelha”, de 2016, elogiada estreia da diretora Shahrbanoo Sadat que ganhou o prêmio principal na Quinzena dos Realizadores de Cannes. O novo projeto da diretora está sendo apresentado no Festival de Veneza, e já garantiu financiamento de um grupo alemão. Em sua nova empreitada, ela trará para as telas um romance ambientado às vésperas da recente retomada de poder pelo Talibã. Com essa retomada, a diretora deixou o Afeganistão com sua família e se estabeleceu definitivamente na Europa, onde não foi necessariamente fácil conseguir apoio, tanto financeiro quanto moral, para o novo filme. Mas, como tantas mulheres afegãs fortes dentro e fora do país, ela persistiu e começará as gravações no final de setembro.

É curioso que seja uma diretora e roteirista a mergulhar num mundo tão profundamente masculino como é este orfanato — Ida Lupino, por exemplo, escolheu um colégio de freiras frequentado só por meninas para ser o centro de seu filme “Anjos Rebeldes / The Trouble with Angels” (1966). Em entrevista para o site Mulher no Cinema, a diretora nascida no Irã e que foi forçada por questões de segurança a filmar “O Orfanato” no Tajiquistão, afirma sobre a importância de seguir fazendo cinema:

Os cineastas afegãos devem encontrar um modo de contar suas histórias em uma língua internacional. No momento, o Afeganistão é um clichê. Precisamos quebrar esse clichê e estabelecer uma imagem mais real do nosso país”

“O Orfanato” não se encaixa no filão de filmes “coming of age”, pois Qodrat não amadurece com as situações vividas no orfanato — embora sem dúvida tenha sido marcado por elas. Tão marcado foi Anwar Hashimi que contou suas experiências num diário, e por ter sido inspirado por este diário que o filme se aproxima mais de um “slice of life”: um recorte da vida do protagonista. Sim, é uma vida atravessada por acontecimentos históricos que se repetiram recentemente. Por a História se repetir, “O Orfanato” é ainda mais pungente hoje que em sua estreia em Cannes cinco anos atrás.

“O Orfanato” está disponível no catálogo da Filmicca.

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