Sol (2021), de Lô Politi

Letícia Magalhães
Cine Suffragette
Published in
5 min readDec 4, 2022

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“Como eu posso ter responsabilidade por um pai que eu nunca conheci?” É a pergunta feita pelo protagonista do filme “Sol” e também por milhões de brasileiros, incluindo eu. Existem cerca de 20 milhões de pessoas sem o nome do pai nos documentos, e mais outros tantos milhões com pai presente no documento, mas ausente no dia a dia. O que nos aflige é uma pergunta hipotética: o que você faria se seu pai, que não o vê há anos, aparecesse de repente?

O pai de Theo (Rômulo Braga) reaparece doente, nas últimas. São amigos e vizinhos do velho que ligam incessantemente para Theo, mandando também para ele endereços da casa e do hospital onde acham que o homem deve reencontrar seu genitor. Pressionado, Theo voa em direção ao reencontro, levando consigo a filha Duda (Malu Landim), que está passando as férias com o pai. Ele vai incomodado, prometendo a si mesmo que será uma viagem rápida até às margens do rio São Francisco.

E o pior acontece: Theodoro (Everaldo Pontes), pai de Theo, não morre. Ficamos sabendo que ele passou por maus bocados: perdeu a esposa, Solange, há pouco tempo, tendo se endividado para pagar um tratamento de saúde infrutífero para ela. Por isso, hoje Theodoro é um homem arruinado, sem casa nem bens, e que tentou suicídio se afogando, mas foi salvo no último minuto. Começa assim o período de convivência forçada entre pai e filho, numa road trip que levará Theodoro até Salvador, onde há uma boa clínica especializada em cuidados com idosos.

Fica claro que se trata de um filme sobre dois homens aprendendo a serem pais: Theodoro e Theo, o filho que também é pai. Duda, por sua vez, se familiariza e se anima com o novo vovô rapidamente, enquanto aprende, de uma maneira mais dura, a conviver com o pai — ou então mudá-lo para que a convivência seja possível. É ela o elo — um bocado irritante, é verdade — que une esses dois pais na viagem. Sendo a mais ingênua e menos rancorosa do trio, é para ela que a situação primeiro se normaliza, e é sobre ela e o pai que o filme acaba sendo, não sobre os dois Theodoros.

Foi uma escolha sábia fazer de Theodoro um personagem quase que completamente silencioso, afinal, o que pode um pai ausente dizer a seu filho além de palavras supérfluas? Cobranças emocionais? Truques de psicologia reversa? Fazê-lo coadjuvante, não protagonista, permitiu um maior destaque ao Théo de Rômulo Braga, que se sentiu profundamente desafiado com o papel, mas tudo compensou quando o ator colheu vários prêmios em festivais por sua atuação em “Sol”. E fazer de Theodoro um personagem silencioso também permitiu que fosse dito muito mais com gestos do que com palavras.

A trilha sonora é um destaque positivo. Indo do instrumental clássico em momentos-chave até música própria da diegese — como aquela versão de “Supera” tocando no bar — todas as escolhas musicais são escolhas felizes. Aqui mais uma vez destacamos os silêncios, tão necessários à trama e tão presentes, em geral de uma maneira incômoda, nas nossas vidas.

O senhor Theodoro está sendo tratado por um médico cubano, o que nos lembra de uma feliz realidade de um passado próximo. Até 2018, ano em que foi extinto o programa Mais Médicos, mais de onze mil médicos vieram de Cuba para suprir uma necessidade do panorama de saúde no Brasil. A saída destes médicos do programa teve razões políticas, e deixou uma imensa lacuna na saúde de cidades interioranas e de periferia, lacuna que nem os mais de 2500 médicos cubanos que permaneceram no Brasil, explorados ao extremo, conseguiram compensar.

A ausência de um pai molda as relações do filho / filha para além da paternidade ou maternidade futuros. Crianças e adolescentes que crescem sem pai são mais propensas ao abandono escolar e aos vícios, baixa inteligência emocional, dificuldade de adaptação, entre outras. Mas “Sol”, conta Lô Politi, não é um filme sobre abandono: é sobre a desconexão, uma das consequências do abandono. Filhos de pais ausentes podem ou ser possessivos demais, temendo o tempo todo perder alguém ou alguma coisa, ou desprovidos de vontade de ligação emocional com outros — inclusive com seus próprios filhos, como acontece com Théo.

A cineasta Lô Politi acerta ao fornecer uma rara e necessária visão feminina — e, por que não, feminista — da masculinidade com os dois Theodoros. O pai é um homem do interior, turrão, desacostumado a falar sobre sentimentos ou mesmo a refletir sobre eles. O filho que também é pai já está inserido num novo contexto, de desconstrução da masculinidade tóxica, mas ainda numa fase embrionária desta desconstrução, ainda pleno de preconceitos e hábitos não muito saudáveis, que o impedem de se relacionar com a filha, que, ao que o filme demonstra, é a única mulher em sua vida, e justamente quem faz a mudança acontecer.

Os pais ausentes merecem perdão? Taí outra pergunta para a qual não tenho resposta. Talvez, como acontece com Theodoro, a vergonha do abandono ainda fale mais alto para estes pais e eles se sintam paralisados física e emocionalmente para tentar uma reconexão. Talvez seja algo muito mais simples: o puro abandono sem arrependimentos. “Sol” nos conta uma história única, de um filho abandonado pelo pai e prestes a abandonar também a filha, mas deixa a reflexão que serve para todos os casos: como o abandono moldou quem eu sou hoje?

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