Somos todos Pacarrete
Não está sendo fácil ser brasileiro. E só não está sendo mais difícil ser brasileiro porque temos o cinema para fazer de tudo por nós: ser catarse, distração, chamada para a resistência ou para nos mostrar que não estamos sozinhos. Este último tipo de filme sempre nos causa uma grata surpresa: é quando, sem esperar, nos identificamos com um ou uma personagem, nos vemos naquela situação retratada na tela e por um momento pensamos que aquele filme, que fala intimamente conosco, foi feito só para nós. Um destes filmes é o premiado Pacarrete, de 2019.
Pacarrete (vivida por Marcélia Cartaxo) é uma senhora que vive no município interiorano de Russas, no Ceará. Ela foi bailarina de sucesso e professora de dança na capital, Fortaleza, mas agora vive numa casa simples junto da irmã. No aniversário de 200 anos da cidadezinha, ela decide dar um presente para todos: uma exclusiva apresentação de balé na festa de aniversário da cidade. A Secretária de Cultura tenta de toda forma engabelar a bailarina, até dizer-lhe na cara que o balé não é bem-vindo na festa. Parece o fim do sonho para Pacarrete. Mas só parece.
Assim como Pacarrete, eu venho de uma cidade interiorana, cidade que minha mãe define como “onde parece que nada vai pra frente”. E não é para ir pra frente mesmo: conservadora até o talo, é uma cidade em que Bolsonaro teria ganhado a presidência em 2018 no primeiro turno. É cidade onde quase todos se conhecem e muitos têm como atividade favorita cuidar da vida dos outros. É cidade em que vale mais QI -“quem indica”- do que habilidades na hora de assumir um cargo. É cidade em que dificilmente chegam as estreias do cinema que fogem do padrão blockbuster. É cidade em que a realidade seria para mim uma prisão sufocante, se não fossem as oportunidades quase infinitas de conexão com o resto do mundo propiciadas pela internet. “Santo de casa não faz milagre”, diz o velho e verdadeiro ditado: assim como Pacarrete era mais conhecida em Fortaleza que em sua Russas natal — onde é tida apenas como uma velha louca — eu também me sinto mais valorizada no espaço cibernético que na minha cidade. Para mim, Pacarrete tocou no lado pessoal.
Pensando agora no coletivo, Pacarrete chega ao público em 2019, num momento de grande desencantamento. É do mesmo ano de Bacurau, e ambos os filmes se fazem necessários naquele contexto. Bacurau é catarse, é a oportunidade única, apesar de metafórica, de quem gosta de cultura ver os fascínoras — os invasores e os que se vendem para um ideal de mundo norte-americano, branco e cristão — recebendo punição exemplar.
Pacarrete é necessário por outro motivo. É um filme sobre a desvalorização das artes — no caso, o balé de Pacarrete desvalorizado frente aos outros ritmos que estariam presentes na festa de aniversário da cidade e agradariam mais ao público. A Secretária de Cultura chega a dizer que, se Pacarrete começasse a dançar balé no meio do forró, seria vaiada. Isso dói porque sabemos que é verdade. E dói mais porque Pacarrete também sabe. Ela tem total consciência de que sua arte, a única coisa que sabe fazer e sabe que faz bem, não é valorizada em Russas.
Mas por que Pacarrete voltou para Russas, se tinha uma carreira de sucesso em Fortaleza? Ao que tudo indica, foi para cuidar da irmã. À mulher, mesmo a que não se casou nem teve filhos, ainda sobra a atividade de cuidadora quando necessário. Vocação feminina? Destino manifesto? Ou simples convenção social? Ficamos com a última opção. Nas cidades pequenas em especial, tradição oprime, e muito.
Pacarrete sente a opressão como mulher relegada a cuidadora, como artista desvalorizada e, finalmente, como pessoa idosa. Na melhor das hipóteses, é vista como excêntrica pela população, como a velhinha que vive esfregando sua calçada e não gosta que ninguém pise nela quando está limpa. Na pior das hipóteses, é vista como velha louca, xingando as mulheres de “rapariga”, falando sozinha e misturando francês com português — porque, aliás, Pacarrete é nome francês: significa “margarida”.
Aí entra a parte que ao mesmo tempo corta e aquece o coração: Pacarrete realmente existiu. Ela era uma figura conhecida em Russas, cidade natal do diretor Allan Deberton, mulher considerada louca por todos, inclusive, durante um tempo, pelo próprio Allan. Já adulto, Allan tomou conhecimento do passado de Pacarrete como bailarina clássica e decidiu contar a história dela num filme. Um filme que foi feito, perfeito, para nós.
Pacarrete chegou ao público num momento de profunda desvalorização do cinema nacional. É um filme para quem ama filmes, para quem ama as artes. Para quem, como Pacarrete, tem consciência desta desvalorização e tenta lutar contra elas com as armas que possui — nem que seja uma caixa de som e um tutu enfeitado com penas de cisne. É um filme para quem se sente desvalorizado em sua cidade natal, ou mesmo em menor escala, em seu círculo de convivência. É um filme para quem teve de sair de um local de gente de mente pequena, ou ao menos se afastar desse tipo de gente, nem que tenha sido através da internet. Pacarrete, ela mesma diz, é forte como um mandacaru. O filme mostra que nós, espectadores amantes da cultura, também somos.